São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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FINO

De perto, o homem mais rápido na piscina é um menino

por SYLVIA COLOMBO

PEIXE GRANDE

Na mochila vermelha se lê, em letras maiúsculas escritas à mão, com canetinha: "C.CIELO". A caligrafia é típica de um adolescente cuidadoso com receio de que seu material seja confundido com o dos colegas. É com ela nas costas que o nadador chega para treinar no clube Pinheiros, onde se exercita durante os meses que passa no Brasil. E é à beira da piscina do clube que recebe Serafina para conversar e tirar as fotos que acompanham esta reportagem.

Jeito de menino e olhos que brilham, na expectativa de uma travessura ou de qualquer coisa que quebre sua intensa e repetitiva rotina de treinos. As primeiras impressões de Cielo em carne e osso se chocam com a imagem que passa pela TV, de atleta sério e concentrado, verdadeiro gigante com seu 1,95m e 88kg.

Trata-se, em essência, de um meninão, cujos trejeitos, ansiedades e prazeres parecem ter sido congelados na época escolar, aderindo à personalidade do jovem adulto. Tem dificuldades em listar as coisas de que gosta além de treinar para conquistar títulos. Sair para comer com amigos, ouvir música e descansar enquanto... Pensa na próxima prova. A resposta é breve, e ele olha o interlocutor como quem quer mudar de assunto.

Já quando fala de natação, pinta em seu rosto um sorriso diferente. Alonga-se ao comentar detalhes do dia a dia de treinos e de alimentação. Faz piadas e lembra histórias sobre os companheiros de provas. É gostoso ouvi-lo falar, com sotaque e informalidade interioranos, ainda que sua linguagem seja aquela cheia de gerúndios, tão comum no mundo do esporte.

Tentar ampliar o papo para outros temas é tarefa inglória. Literatura, cinema, futebol, nada o interessa de modo mais profundo. Seus heróis são, em geral, esportistas. E menciona com distinção o corredor Ayrton Senna (1960-1994) e o tenista suíço Roger Federer. Não que não curta ler, pelo contrário.

A estante, abastecida pela mãe, acumula livros que lê muitas vezes simultaneamente. O que predomina são os de autoajuda e os relatos de ex-treinadores. Lair Ribeiro e seu "O Sucesso Não Ocorre Por Acaso" é um ao qual volta sempre. Fora isso, um pouco de tudo, "de 'Marley e Eu' a Luis Fernando Veríssimo", resume.

Já entre as preferências musicais, elege eletrônica –house e tecno. Entre os brasileiros, menciona as bandas Capital Inicial e Jota Quest. "Só não ouço pagode e sertanejo."

DÓI SER O MELHOR

Apesar da intimidade com a água, Cielo não se diz especialmente atraído pela ideia de passar boa parte de sua vida dentro dela. "Cada esporte tem seu elemento de magia. Eu entendo que muita gente no Brasil, por causa do clima, tenha essa relação de identificação com a água. Mas, pra mim, não significa nada. O que me atrai na natação é a competição. É olhar pro cara que está do meu lado e pensar: 'será que eu vou ser melhor do que ele?'", explica, rindo. Obstinado, cobra-se o tempo todo.Nem quando viaja para a praia Cielo se sente seduzido a entrar no mar apenas para brincar. "Fico do lado de fora e só entro se estiver fritando no sol. Sou muito metódico. Enquanto estou em período de treinos, na universidade, estou focado naquilo. Se estou de férias, na praia ou em qualquer lugar, não quero nem saber de água."

Peço que comente um surpreendente depoimento do ex-nadador Ricardo Prado, após deixar a carreira. Vencedor de uma medalha histórica para a natação brasileira em 1984, Prado disse, em certa ocasião, que não tinha prazer em nadar, mas sim em ganhar.

"Não diria que não gosto de treinar, mas tem dias em que a rotina é chata, sim. Você acorda, olha pro despertador e quer voltar a dormir. Mas, nesse ponto, deve ser igual em qualquer profissão. Eu acho...", diz o rapaz, que ainda não sabe bem o que é o mundo do trabalho nem decidiu o que vai fazer depois da aposentadoria.
Se o cotidiano às vezes maçante de treinos não o incomoda tanto, Cielo não esconde o desconforto com a dor. Especialmente com as pontadas que sente, "até no osso", após uma prova de velocidade. "Aquela cara que eu faço não é brincadeira. Tá doendo mesmo. Acaba a competição, quero deitar e levantar as pernas, tirar o maiô que tá machucando. Mas aí tem que dar entrevista, andar. É duro, viu?", diz, rindo.

A VIDA NÃO É UMA FESTA

Aos 22 anos, Cielo já ganhou duas medalhas olímpicas, ouro nos 50m livre e bronze nos 100m livre, ambas em Pequim; e duas de ouro no último mundial de Roma, nas mesmas provas. Nos 100m livre, é atual detentor do recorde mundial, com o tempo de 46,91 segundos.Por causa dele, a natação começa a ganhar uma visibilidade que não tinha no país do futebol. Porém, o atleta ainda acha que os brasileiros conhecem pouco o esporte. Para ilustrar, conta uma anedota sobre um candidato a patrocinador que ele acabou rejeitando. "Os caras vieram me dizer que o projeto era que eu crescesse junto com a empresa. Eu olhava pro sujeito e pensava: `será que esse cara sabe que eu já bati recorde mundial e já ganhei medalha de ouro na Olimpíada? Quem é que tem que crescer aqui, eu ou ele?´"

Cielo passa cerca de seis meses por ano no Brasil e seis nos EUA, em Auburn, no Alabama. Ali, além de treinar, basicamente descansa para o treino do dia seguinte. "Sou um hibernador." Quando a solidão aperta, telefona para os pais. Em uma ocasião de mais angústia, chegou a mandar uma passagem para que a mãe viajasse, no dia seguinte, para ficar um pouco com ele.

E de São Paulo, Cielo gosta? "São Paulo é perigosa", sentencia. Espero pelas tradicionais reclamações sobre a violência, o tempo ou o trânsito que geralmente seguem esse tipo de declaração. Mas não, os perigos da Paulicéia, para Cielo, são outros. Celular que não para, assédio para participar de eventos, jantares ou festinhas que ameaçam seu sono restaurador. "Jantar em São Paulo acaba meia-noite. Aí, como faz? Se vou, fico pensando que estarei quebrado pro treino. Aí, em vez de fazer duas coisas mal, prefiro não ir e treinar direito."

Apesar da busca obstinada por resultados, Cielo não deixa de observar as mudanças da vida nos EUA nos últimos tempos. Acha que há um ambiente diferente desde a eleição de Obama. "Lá no Alabama o pessoal é muito conservador. Mas americano tem isso de bom. O cara ganhou, todo mundo o apoia."

De um modo geral, admira a sociedade norte-americana. "Todo mundo sabe quem é a elite, mas ninguém esbanja, em roupa, em carro. Todo mundo parece igual. Aqui no Brasil é que tem essa coisa de carro com insulfilm. A diferença social fica muito evidente."

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