São Paulo, domingo, 30 de Outubro de 2011

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DESENHO

A incrível saga do tijolo cobogó

Juliana Tourrucôo

Vazado, quadrado, de concreto. é o bloco criado em recife, nos anos 20, por um alemão, um português e um brasileiro e que está voltando à moda na arquitetura e na arte

Ao se mudar para uma casa nova, em 2005, o designer Fernando Campana comprou alguns tijolos cobogó para fazer uma divisória entre dois ambientes. Seu irmão Humberto foi visitá-lo, antes de a parede subir, e empilhou alguns desses blocos no canto da sala. Do acaso, nascia uma bancada.

"Decidi desmontá-la e levar os exemplares para o estúdio para fazer alguns testes", diz Fernando. Em 2009, no Salão Internacional do Móvel, em Milão, chegava a mesa Cobogó.  Hoje, ela é vendida por quase 20 mil euros. A peça faz parte do acervo da exposição "Anticorpos - Fernando & Humberto Campana 1989-2009", que a dupla abriu neste mês, no Centro Cultural Banco do Brasil de SP, e fica em cartaz até 15 de janeiro.

Não é a primeira vez que o tijolo se deixa ver nas artes. Ele faz uma ponta também em "Cidade de Deus", filme de Fernando Meirelles. É através de uma parede dos blocos vazados que o personagem Buscapé fotografa cenas da guerra do tráfico. A parede ilustra um dos pôsteres do filme.

Mas é no poder nacional que ele faz mais vista. Quase metade dos edifícios construídos em Brasília de 1960 a 1979, entre residências e prédios governamentais, tem cobogós. Hoje, há exemplos brasilienses de cobogó preservados pela cidade, como o da fachada da Biblioteca Nacional. "Esses são do [artista e arquiteto] Athos Bulcão (1918 - 2008)", diz Oscar Niemeyer, responsável pelo projeto, à Serafina.

DESIGN NACIONAL

A peça de design que conquistou os Campana e Niemeyer veio do Nordeste. Mais exatamente do quintal de uma casa simples, no bairro dos Coelhos, em Recife, nos anos 1920. Seu sonoro nome é, na verdade, a junção das primeiras sílabas dos sobrenomes de seus inventores: Coimbra, Boeckmann e Góis.

O português Amadeu Coimbra, o Co, era mestre de obras. Construindo, imaginou uma linha de tijolos mais resistente, mais leve e menos onerosa do que os modelos produzidos nas olarias da região. Chamou o ferreiro alemão Ernest Boeckmann, o Bo, para ajudar a desenhar uma base metálica para sua ideia.

Esse molde, ao ser preenchido com a densa massa de cimento e areia, dava forma a um bloco-cubo, com lateral vazada por nichos de 4 cm x 4 cm. Para testar e atestar aquele novo tijolo, chamaram o engenheiro brasileiro Antônio de Góis, o Go, que pediu ajustes na investida.

A princípio, a fusão de sobrenomes deu em "combogó". Depois, por sonoridade, virou cobogó. "Eles ficaram felizes com essa invenção. E, ao notar a perfeição mecânica dos modelos, resolveram patentear os tijolos", conta o filho do Sr. Bo, Günther Boeckmann (1918-2011), que faleceu duas semanas depois de dar esse depoimento à Serafina. Ele sabia o exato momento em que o tijolo ganhou vida nova. "Foi em 1934."

Foi nesse ano que o arquiteto Luiz Nunes (1909-1937) recebeu a tarefa de projetar o prédio da Caixa-d'Água, no centro histórico de Olinda (PE). Traçou vigas e pilares de puro concreto. Já nas laterais da obra pontuou fiadas de cobogós desprovidas de argamassa. Eles, assim como toda a fachada, foram apenas pintados de branco. Livres, seus nichos deixariam os ventos fortes da região passarem livremente, evitando um embate da construção com a força da natureza.

A Caixa-d'Água, recentemente restaurada e reinaugurada em 24 de outubro, inspirou outros prédios, e o sucesso do cobogó começou a se fazer notar. Em 1942, o conselheiro do MoMA de Nova York Philip L. Goodwin (1885-1958) veio conferir as comentadas soluções adotadas no país para garantir o conforto térmico das edificações de forma natural.

"Em particular, a proteção contra o calor e os reflexos da luz forte foram corajosamente encarados e brilhantemente resolvidos", escreveu Philip, em seu livro "Brazil Builds" (1943), editado logo após essa viagem.

Durante sua estada, como descreve na introdução, foi recebido pela nata da arquitetura brasileira. De certo, o grupo falou e repetiu inúmeras vezes co-bo-gó.  O gringo, no entanto, entendeu "cambogé".

Foi assim, com grafia errada, que o tijolo foi nomeado na obra, referência de consulta sobre arquitetura brasileira, por anos, mundo afora. 

Acabou virando sinônimo de tijolo vazado. Hoje, mesmo os modelos tramados, floridos, coloridos ou exóticos, são chamados de cobogó. Daí a Casa Cobogó, do arquiteto Marcio Kogan, construída em 2010, que tem vários modelos, levar esse nome.

Co sem Bo sem Gó

Mas o trio criador não viu o sucesso junto. Em 1960, enquanto Brasília era erigida com cobogós, os três já não se falavam mais. Romperam em 1943, quando o Brasil entrou na guerra contra a Alemanha.

Judeu, o Sr. Boeckmann passou maus momentos com a família em Recife. "Nossa casa foi depredada, nos expulsaram do bairro", relembrou o filho Günther. A família vive na cidade até hoje.

O senhor Coimbra acabou voltando para Portugal e Antonio Góis entrou para a política e foi prefeito de Recife duas vezes (entre 1922-1925 e 1931-1934). Os três nunca mais se falaram.

Nos anos 1980, o cobogó ganhou fama de cafona e saiu de cena. Mas agora ensaia um retorno. Dá nome a uma editora, que publica livros da cantora Adriana Calcanhotto e de artistas plásticos, como Adriana Varejão e Nuno Ramos, entre outros. Há até um projeto, ainda em fase embrionária, de fazer um museu Cobogó em Olinda. Haja tijolo!

Olaria

Se começar a reparar, você vai ver tijolo cobogó por todo lado. faça o teste

biblioteca nacional (2006):

O tijolo vazado é um dos materiais de construção mais utilizados em Brasília

Casa Cobogó (2010):

Outro blocos vazados hoje levam o nome, como na casa do arquiteto Marcio Kogan

mesa Cobogó (2009):

Inspirada no tijolo, a mesa dos irmãos Campana adquiriu status de obra de arte

Caixa-d'água (1934):

O início de tudo, no centro histórico de Olinda, em projeto de Luiz Nunes


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