São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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GASTRONOMIA

Ferran Adrià e os estrelados no "Michelin" na prestigiada cozinha espanhola

por JOSIMAR MELO, da Espanha

OLÉ ESPANHOL

Após ouvir o anúncio de que Ferran Adrià fecharia seu El Bulli, crítico percorre 16 estrelas do "Michelin" em busca do futuro da cozinha espanhola

"É, isto aqui não vai mais poder continuar sendo assim. Vai ter que ser muito diferente."
São 3h numa noite de outono europeu, no final de novembro. "Isto aqui" é o lugar onde estamos –o mais importante restaurante do mundo, o El Bulli, pousado mansamente numa pequena enseada, a Cala Montjoi, na Costa Brava espanhola.
Quem pronuncia as palavras, chacoalhando a cabeça em movimentos rápidos, ar pensativo (mas com seu habitual brilho intrigado nos olhos), cabelos em desalinho como sempre (ainda mais após mais um dia de serviço num restaurante lotado), é o sócio "disto aqui", para muitos o melhor chef do mundo, Ferran Adrià, 47.
"Vai ter de ser muito diferente" era uma notícia e tanto para este repórter, mesmo soterrado por uma refeição que durou mais de cinco horas ao longo de 50 pratos e muitos vinhos –fora os chocolates que atacamos com o café, Adrià sentado à mesa, olhar agora distante. Tento arrancar mais: vai fechar? Mudar como? Um sorriso maroto, de quem não entregará o ouro ao bandido antes da hora, e a resposta breve: "Pelo menos mais um ano continuamos igual. Depois...".
Dei a notícia, mesmo ainda cheia de reticências. Mas era só o começo. Em janeiro, no evento Madrid Fusión, Adrià anunciou que manteria o El Bulli até 2011, depois fecharia por dois anos, nos quais ficaria pesquisando, para reabrir em 2014. Foi uma bomba no mundo da gastronomia. Mas não parou aí. Em fevereiro, deu no "New York Times": El Bulli vai fechar definitivamente. Logo depois, o próprio Adrià afirma ao espanhol "El País" que não era verdade.
O próximo passo foi anunciado em mais um evento, o Fórum Gastronômico de Santiago de Compostela, no final de fevereiro: El Bulli vai virar uma fundação de pesquisas. E o público? "Muitas fundações culinárias no mundo servem comida para o público", diz um reticente Adrià, ao garantir que os pratos criados nesse novo laboratório poderão, sim, ser provados. É inútil perguntar como será o serviço, para quantas pessoas, como serão as reservas (considerando que hoje há filas de 8.000 pessoas aguardando mesa)...
No caso dele, uma interrupção é mais do que compreensível: enquanto muitos chefs se esgotam por ter que criar novas receitas a cada ano, Adriá vem há duas décadas criando não somente receitas, mas novas técnicas a cada ano, um desafio brutal. O que é emblemático, porém, é que o anúncio dessa interrupção sinaliza um novo momento na gastronomia de vanguarda que a Espanha hoje oferece ao mundo.
Há poucos dias, outra notícia abalou os fãs da gastronomia espanhola –um incêndio destruiu, no País Basco, o restaurante Mugaritz, de um dos chefs mais jovens e cerebrais dessa nova cozinha, Andoni Aduriz. Sinal dos céus de que esse tempo está acabando, e o reinado da cozinha molecular (ou, como preferem os espanhóis, "tecnoemocional") estaria se esgotando?

DE VOLTA PARA O FUTURO
Rodando a Espanha por restaurantes que somam mais de uma dúzia de estrelas do guia "Michelin", além das aulas e palestras, pude ter vislumbres do que nos espera. Uma indicação foi dada no evento Gastronomika, em San Sebastian: sua edição de novembro foi dedicada ao Japão. O que se viu foi uma respeitosa homenagem à arte e perícia dos japoneses –que os franceses já haviam notado na nouvelle cuisine dos anos 1970 e 1980, mas de cuja fonte beberam apenas tímidos goles.
Foi interessante constatar os pontos de contato entre as duas cozinhas. Por exemplo, as primeiras experiências de Adrià com substâncias "bizarras" (no dizer dos mais conservadores), inclusive para fazer suas famosas espumas quentes, utilizavam a alga nori; e as técnicas de atingir o âmago de sabor de cada ingrediente (ainda que os transformando ou descontruindo) lembra muito a obsessão dos japoneses no mesmo sentido, o da exaltação dos sabores puros.
Outra pista do que nos aguarda: desabando de um restaurante estrelado para outro, constato uma intenção cada vez mais forte de realçar seus ingredientes, seus produtos. Os modernos equipamentos que têm assombrado o mundo da gastronomia –como aparelhos que capturam aromas e os injetam nos produtos– estão longe de serem aposentados, mas cada vez mais os chefs os dominam para realçar produtos que relevância a cada dia.
Nessa madrugada em que Adrià pede mais um café para encerrar nossa noitada, um dos assuntos que o apaixona é um dos pratos do cardápio –um maracujá grelhado na brasa, com recheio lembrando... tucupi. Nosso brasileiríssimo ingrediente não pode ser exportado; mas, mesmo sem cometer contrabando, o chef conseguiu levar o sabor brasileiro a seus clientes, desconstruindo mentalmente o sabor do tucupi e o reinventando a partir de outros ingredientes. "Quis homenagear o Brasil, os produtos que vocês têm e que serão determinantes num próximo momento da gastronomia mundial", disse o animado anfitrião.
Quem sabe na próxima onda culinária o Brasil tenha mesmo seu lugar. Se depender do principal chef da atualidade, seu próximo prato pode mesmo ter ingredientes brasileiros.

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