São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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LUXO

Por dentro do guarda-roupa -e das ideias- das emergentes milionárias do capitalismo russo

por MARIANNE PIEMONTE, de Moscou

BONECAS RUSSAS

Como vivem –e compram– as mulheres dos oligarcas do petróleo em Moscou, onde uma casa nova pode vir até com helicóptero (de brinde) na garagem

"Se existe um país no mundo que, perante os outros países, é mais desconhecido e inexplorado, enigmático e misterioso, esse país sem dúvida é a Rússia."
Fiódor Dostoiévski (1821-81)

Pois se no tempo do autor de "Crime e Castigo" já parecia difícil acreditar que um ocidental pudesse compreender a Rússia, dois séculos depois as coisas se mostram ainda mais embaralhadas.
Para começar, abandone a imagem das matrioskas. Dezenove anos após a dissolução da União Soviética, a representação feminina está muito mais para Barbie gala do que para as tradicionais bonecas russas de madeira.
Depois da queda da Cortina de Ferro, nos países vizinhos que tiveram dominação soviética, mulheres da Polônia, República Tcheca, Ucrânia e Hungria foram sem medo de ser feliz às compras. Mas as russas, essas sim passaram a comprar como se não houvesse amanhã. Uma das possíveis razões para esse desbunde é que, claro, há muito dinheiro hoje por aquelas bandas, e a outra é um notório desejo de consumo reprimido por décadas sob os freios do comunismo.
Segundo um levantamento do jornal inglês "Telegraph", vivem hoje na Rússia 110 bilionários e 130 mil milionários, a maior parte homens de negócios do setor de petróleo e gás, que foram beneficiados pelas privatizações em 1992.
Um dos símbolos desse fenômeno russo é o GUM, uma construção do século 19, no centro da praça Vermelha, onde as mulheres dos membros do Partido Comunista tinham permissão para fazer compras. "Há duas décadas, elas se revezavam nas filas do GUM para comprar leite, carne e queijo", lembra Andrey Vasin, editor da revista de luxo moscovita "Sur La Terre". Hoje, um tumulto no GUM é sinal de que há coleção nova de Dior, Kenzo ou Hermès, algumas das grifes que fazem parte do complexo de luxo no qual o prédio foi transformado.
Uma das mulheres que nunca perde esse novo tipo de fila é Ida Dostman, 32. A reportagem a encontrou em sua casa, no bairro de Rublyovka, espécie de Alphaville em São Paulo. Com algumas diferenças: quem compra casa por lá ganha como brinde um helicóptero das construtoras locais. Um imóvel na região não sai por menos de R$ 6 milhões.

DIAMANTES NO CAFÉ
Na casa de Ida, quatro seguranças recepcionam os visitantes com metralhadoras penduradas no peito. Ela usa um traje esporte com estampa de onça. Havia acabado sua aula de ginástica com seu personal trainer e feito sua habitual sessão de bronzeamento artificial. Fazia -8ºC em dezembro e Ida parecia ter desembarcado de alguma praia do Recife.
Ela conta que cursou direito na Universidade de Moscou, mas abandonou a carreira para ser "esposa". Tamanha dedicação a impediu de amamentar os dois filhos, "para não danificar os seios". Okana Robsky, socialite russa que escreveu o livro "Casual", no qual retrata a vida dessas novas ricas de Rublyovka (vendeu 30 mil cópias em duas semanas nos EUA), afirma que a paranoia dessas mulheres que usam diamantes 14 quilates no pescoço para tomar café da manhã é perder o marido. Ida não foge à regra.
Enquanto conta um pouco de sua história, ela me convida para entrar em seu closet, onde mais de 50 bolsas Hermès, modelo Birkin (o mais barato custa cerca de R$ 20 mil), fazem fila, ao lado de toda cor e modelo de Louboutins. "Gosto desses sapatos porque são confortáveis", diz. Ida adquire seus saltos em Moscou, depois compra cristais e manda customizar na Ucrânia. "Não gosto de ter nada que outra mulher tenha. Não uso Dior, por exemplo, porque muitas russas usam."
Ela conta que costuma viajar muito –e acha que as russas são "muito mais femininas" do que qualquer outra mulher no mundo. "Em Los Angeles, elas se arrumam para a profissão, mas cada vez que abro uma revista de celebridades e as vejo de qualquer maneira, fico chocada." Para não aparecer "de qualquer maneira" para Serafina, Ida abriu sua caixa de joias, com cerca de cem peças em diamantes de grifes como Graff, Chopard e Bulgari. "Isso é para o dia a dia, as de noite ficam no cofre, por causa dos empregados."
Ao se preparar para as fotos, abriu um armário de fazer qualquer integrante do Peta (pessoas pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês) desistir da causa. Havia mais de 50 casacos de pele. Longos! Ela escolheu um de pele de foca e foi para o jardim interno da casa, onde a neve ainda estava baixa.
Apesar de parecerem vindas de planetas diferentes, Ida é prima de Veronika Solvyanova, 29, diretora da Moscou Fashion Week. Veronika já trabalhou como produtora para marcas italianas como Moschino, Max Mara e Emporio Armani. Ela conta que há muitos novos estilistas russos interessantes, mas eles têm dificuldade de se estabelecer exatamente por conta do deslumbre das mulheres ricas por marcas estrangeiras. Ela enrola sua echarpe italiana Etro e diz: "As russas não tiveram educação nem de moda nem de consumo".
A relações-públicas Yulia Kuznetsova, 25, acha que exibir grifes é uma questão de sobrevivência na Rússia. "É uma espécie de código que mostra se você é ou não bem-sucedido", diz. Ela, que na entrevista vestia um colete de pele preta e um anel em ouro branco Bulgari, acredita que o capitalismo aprisiona ainda mais do que o socialismo. "Ninguém aqui conversa sobre livros e filmes, mas sobre o sapato que a atriz estava usando."
A tese de Yulia é que, durante os anos de comunismo, as pes- soas interessantes e inteligentes sumiram (eram presas e assassinadas) ou fugiram para a França e para os Estados Unidos. O avô dela, que fazia parte de um instituto de educação, foi preso várias vezes como "inimigo da pátria". "Em Rublyovka, o bairro dos super ricos, só mora gente sem educação. O sonho daquelas mulheres é ser mulher de milionário", diz.
Parece que isso não é segredo. Tanto que Oksana Robsky e sua amiga Ksenia Sobchak, conhecida como "a Paris Hilton de Moscou" e casada com um oligarca, escreveram juntas "Marry a Millionaire" (case-se com um milionário). No livro, elas dão dicas de "como não aparecer à noite com blusas que mostrem a barriga porque suas intenções serão óbvias" e explicam por que "tops de estampa de bicho da Dolce&Gabbana e botas de salto na hora do almoço podem deixar em dúvida se você é ou não uma prostituta ucraniana". Mas, segundo a cartilha, à noite tudo isso pode. Ao mesmo tempo.

ELAS ODEIAM LIQUIDAÇÃO
Ao mesmo tempo que Yulia Dutheil, 30, lembra-se com certa nostalgia do tempo em que a mãe tinha um casaco marrom para o inverno e um cinza para o verão, como a maioria das mulheres moscovitas, ela também se recorda de quando a Mexx, uma espécie de C&A, e a Benetton chegaram em Moscou, no começo dos anos 1990. Venderam até os sofás que decoravam as lojas.
Hoje, ela é diretora de marketing de uma das lojas do GUM e diz que a Rússia passa por uma nova transformação. "Crescemos em dez anos o que a Europa cresceu em 50. Criamos um mercado de moda que não existia. Não dá para ser Paris do dia para a noite", defende. "Em Paris, até a Chanel e a Lanvin fazem liquidação. Aqui, elas simplesmente não existem."
Aliás, se existe algo de que as russas não gostam é de liquidação. Quem confirma é a empresária Marianna Belchanskaya, 33, uma das sócias do Mercury Group, uma espécie de Daslu 15 vezes maior e mais luxuosa. O grupo é dono de cinco dos dez shoppings de superluxo da cidade. "As russas não compram em liquidação, gostam de peças exclusivas." Ela passa as manhãs no seu escritório no Kremlin e a outra metade do dia em seu escritório particular em seu SPA francês, na passagem Tretyakovsky, uma galeria de lojas de luxo em frente ao prédio da KGB, a agência de serviço secreto da ex-União Soviética.
Marianna deu entrevista enquanto retocava o tom vermelho das madeixas. "Acho que somos geneticamente mais mulheres", diz. "Ou todas sonhamos em ser Anastácias."
Ela se referia à princesa que, diz a lenda, teria conseguido fugir quando os comunistas, para tomar o poder, assassinaram a família real, há 90 anos. Marianna é uma "neoanastácia" vestida com sapatos Prada, blusa Chloé, relógio, diamantes e bolsa Dior. Um de seus negócios é o shopping de Rublyovka, o Barvikha Luxury Village, naquela estrada que vai para casa de Ida, a apaixonada por diamantes. Ali, compra-se desde bolsas Gucci por R$ 9.000 a Lamborghinis a R$ 350 mil. "As mulheres costumam gastar US$ 300 numa bobagem ou US$ 10 mil num único casaco, depende do humor."
Marianna tem orgulho de contar que gente do mundo todo, como sua amiga, a modelo inglesa Naomi Campbell, costuma ir a Moscou comprar itens exclusivos. Ela se lembra de uma tarde que passou no MoMA, em Nova York, quando foi abordada por uma americana que se apaixonou pelo seu sapato. "Fiquei chocada porque imaginei que num museu as pessoas não estejam pensando em sapatos, mas disse a ela para vir fazer compras em Moscou." O sapato era um Prada, "sexy, confortável e normal".
Apesar de estar envolvida em tantos (e caros) projetos, Marianna não tem guarda-costas, como acontece com a maioria das russas. Ela diz que boa parte delas usa esses homens para "entretenimento", como fazer massagem nos pés ou comprar cigarros. "Eu acredito que, se quiserem me matar, farão isso de qualquer maneira. Então eu simplesmente vivo."
A nova geração de princesas Anastácia pode até ser adepta do popular "deixa a vida me levar" –afinal, nada mais capitalista do que viver sob a cartilha do hedonismo. Mas desde que o "savoir faire" seja cercado de muito luxo.

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