São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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NO RIO

No verão dos recordes de temperatura, a saga do sorvete em solo carioca

por HELOISA SEIXAS

PECADO QUE SALVA

Só o sorvete redime cariocas e turistas neste verão infernal

Olhe que eu gosto de calor. Nascida e criada no Rio, adoro o verão, estação que mais combina com a cidade. Mas, neste ano, está demais! Parece que o tal aquecimento global se concentrou aqui. Que calor é esse? É o que entreouvimos nas ruas o tempo todo. Para tentar sobreviver, comecei a assistir aos filmes de alpinismo na neve estrelados pela alemã (maldita e maravilhosa) Leni Riefenstahl e a saborear cada segundo das Olimpíadas de Inverno, no Canadá. E também decidi me entregar sem culpa ao consumo dessa delícia que já faz parte da vida dos cariocas há 176 anos: o sorvete.
Para quem não sabe –e fiquei sabendo disso ao folhear o clássico "Aparência do Rio de Janeiro", de Gastão Cruls–, o sorvete chegou ao Brasil em 1834, não no verão, mas no inverno. No dia 6 de agosto daquele ano, aportou no Rio o navio americano Madagascar, vindo de Boston, trazendo a bordo 217 toneladas de gelo. O gelo, que seria usado para a fabricação dos nossos primeiros sorvetes (mas também para outros fins, inclusive medicinais), tinha sido encomendado por um tal Lorenzo Fallas, dono de um comércio no Largo do Paço (hoje praça Quinze), ali bem juntinho do Arco do Telles. O gelo foi enterrado em grandes covas (sim!) na rua Santa Luzia, junto com pó de serragem para não derreter, e durou quase cinco meses.
Mas já no dia 23 daquele mês de agosto, os jornais anunciavam a venda de sorvete na Confeitaria Francioni, da qual o sr. Fallas era sócio: "Gelados de diferentes qualidades, tanto simples amanteigados (sorvete de creme) quanto peças fortes (que Cruls presume ser "montagens escultóricas" – quem sabe o avô do nosso sundae), para que possamos suavizar com seu uso os ardores do verão". Ou seja, nascia assim –para combater o calor– o sorvete carioca.
Nosso Rio 40 graus deveria ser um mar de sorveterias, mas nem é tanto assim. O brasileiro em geral toma menos sorvete do que se poderia supor: nosso consumo per capita não chega a cinco litros por ano, quando os suíços, por exemplo, consomem quase quinze. Mas não se pode negar que algumas sorveterias cariocas caem de charme, como a Confeitaria Colombo (fundada em 1894), a Casa Cavé (de 1860) e a Confeitaria Manon (de 1942), todas no centro. A sorveteria Moraes, na avenida Visconde de Pirajá, que fez parte da minha infância, fechou, mas seus herdeiros continuam vendendo o sorvete em carrinhos. Entre as mais modernas, minhas preferidas são o Café Felice e a Mil Frutas, ambas com mais de um endereço na cidade, além da pequena sorveteria Brasil, que há pouco abriu loja em Ipanema. Sem falar nas mais populares Itália, La Basque e até na querida lanchonete Bob´s, com seus milkshakes retrô. É a elas que tenho recorrido.
Nesses dias tórridos, fico pensando nas senhoras de anquinhas e chapéus de flores, abanando-se naquele longínquo ano de 1834, enquanto provavam um sorvete pela primeira vez. Devia ser quase um susto. A descrição de Gastão Cruls confirma: "A princípio, o carioca o recebeu meio ressabiado. Parecia que lhe queimava a boca. Não fez como aquela dama italiana que, ao se deliciar com o primeiro sorvete, dava voluptuosos estalidos de língua, e exclamava: 'Que pena não ser pecado!' Mas foi rápida a reação favorável dos fregueses. Logo depois, muita gente atravessava a baía, vinda de Niterói, só para tomar um gelado."
Hoje, com a mania de emagrecer, sorvete até é pecado, sim –mas quem quer saber? Com um calor desses, só o gelo pode nos salvar.

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