São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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FINO

O vira-lata

por IVAN FINOTTI

Cantor abusado e compositor sofisticado, o paulistano Renato Godá lança CD para paladares finos

"O Lobo Solitário" é uma história em quadrinhos japonesa sobre um samurai que, após a morte da mulher, vaga pelo Japão matando oponentes e empurrando um carrinho com seu bebê. Se o compositor Renato Godá fosse uma história em quadrinhos japonesa, ele seria "O Lobo Solitário". Desde que sua namorada foi para a Europa e lhe entregou um recém-nascido, Godá cuida de Gabriel, vagando por inúmeras casas e apartamentos de São Paulo, morando um mês de favor aqui, dois anos de aluguel ali, carregando, sempre, além da criança, seu violão Godin preto de cordas de náilon transparente.

Hoje, Gabriel tem 14 anos e quase os mesmos 1,80m do pai. Mas houve momentos nessa história em que Renato fazia shows no Bexiga com o menino dormindo no carrinho, atrás do amplificador. Para aliviar o pequeno, Renato arrumou um protetor de ouvido grandão, daqueles de aeroporto.

Pai solteiro com um filho a tiracolo, todo mundo já vai logo achando bonitinho. Mas um guitarrista descabelado dando mingau na boca de um bebê com superprotetor auricular, aí já é covardia! Era mimo para todo lado... Certa vez, durante uma jam session, um punk mal encarado se ofereceu para esquentar a mamadeira do fedelho. E ninguém reclamava de parar o ensaio quando ele fazia cocô. O Lobo Solitário e seu pequeno Gabriel conquistavam assim seu espaço.

Renato Godá foi músico a vida toda. Aos 38 anos, está lançando um pequeno disco sem nome. Pequeno na quantidade: traz apenas sete músicas. Românticas, melódicas, divertidas, com instrumentos inesperados, gravadas no estilo ?Bob Dylan: a) apenas dois dias de estúdio; b) os músicos não conheciam as canções previamente; c) não foram feitas firulas depois.

Piano, acordeom, contrabaixo, banjo, violino, bateria e guitarras criam um disco "natural", que soa como se estivesse sendo tocado no momento da audição. "Gosto do primeiro take. Não gosto de gravar voz. Fico com aflição do que é muito perfeitinho. Queria sujeira; queria que soasse antigo. Colocamos um microfone do lado de fora da sala para captar ambiência. Dá pra escutar uma chuva a certa altura", conta o músico.

O resultado é diferente do jazz, da MPB, do rock. Difere também de punks ou sons eletrônicos que Renato Godá gravou em dois ou três discos anteriores. Talvez seja uma mistura de tudo isso. Vamos acrescentar também um pouco de músicas francesas de bordel. Chique? Sofisticado? Pode ser; depende de quem ouve. "Tudo tem um quê de requintado e de vulgar", ele canta em "Kamikaze". "Adoro a corda bamba entre o brega e o cult", afirma. "Adoro quando fica a dúvida: ‘É cafona ou é bom? O que eu devo pensar sobre isso?’"

BOM PARTIDO

O disco sem nome de capa marrom que Renato Godá está lançando começa com uma enorme e autocongratulatória falta de vergonha na cara: "Sou um pervertido/ Livre leve e solto/ Um vagabundo astuto/ Um vira-lata escroto". A canção se chama "Bom Partido" e o título nada tem de ironia, afinal "Você pode se divertir/ Você pode se divertir...".

Essas letras -alvo dos maiores cuidados de Godá-, as canções de amor e ódio e o canto declamado/bêbado/descompromissado/despretensioso inserem o compositor numa linhagem nobre, a do francês Serge Gainsbourg, do norte-americano Tom Waits, do britânico Nick Drake ou a de seu preferido, o canadense Leonard Cohen. E a coisa toda segue nessa onda cool.

Curiosamente, o álbum quase morreu em 2007. As gravações aconteceram já há um ano e meio, e Godá não pretendia lançá-las. Gravou por gravar. Colocou-as na internet (ouça em www.myspace.com/renatogoda) e esqueceu. Tinha tudo para acabar assim, mas, como acontece com os fenômenos da rede, alguém acabou achando, ouvindo, gostando, repassando e, de repente, seu telefone estava tocando.

Foi chamado para um show no clube Na Mata Café., que virou temporada. Recebeu outros convites. "De repente, estava em Curitiba e em Buenos Aires." No fim do ano passado, resgatou as canções e bancou uma edição de mil cópias. O lançamento foi no Baretto, em uma noite repleta de paulistanos ilustres. Há um mês, uma gravadora e distribuidora independente o procurou para relançar o disco, agora com encarte. Assim que o CD sair da fábrica, Godá vai relançá-lo em shows no Rio e em São Paulo.

VÍCIOS

"De todos os vícios, o único que não consegui ter foi o de frequentar academia", diz o compositor, sem brincadeira. "Aos 23, quando minha namorada ficou grávida, eu vivia de forma um tanto perigosa. Dos meus amigos, um estava preso, outro com Aids, outro tinha levado tiro. Usei de tudo. De repente, com a gravidez, eu quis ver meu filho crescer, trocar de dente, aprender a ler. Aí parei com tudo. Há 13 anos não fumo um baseado. É algo incompatível com a boemia: não dá para discutir por que o power rangers vermelho brigou com o azul se você estiver de ressaca..."

Hoje, Renato Godá, 38, 1,80m, logo vai ser alcançado pelo filho de 14 e 1,77m. Logo, logo, o Lobo Solitário não vai ter mais a quem carregar enquanto vaga pelos becos de São Paulo. Mas o violão Godin preto de cordas de náilon transparente, esse não vai ficar pra trás.

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