São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2011

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GASTRONOMIA

Um prato do peru

por ZECA CAMARGO

Zeca Camargo vai a lima, capital do Peru, para desvendar o ceviche, receita fundamental da culinária regional mais festejada do momento

Se o ceviche é mesmo o novo sushi, então Lima é a atual capital mundial da gastronomia. Num mundo onde tudo viaja muito rápido -inclusive ondas culinárias-, não é de surpreender que um prato tão específico de uma cultura tenha se tornado uma obsessão em cardápios de vários países. Mesmo assim, a transformação do ceviche, de "comida caseira" para "item gourmet", foi tão rápida quanto impressionante -e o mérito é todo do quitute, que não só é gostoso como simples de preparar.

Há cerca de três anos, quando a "febre ceviche" ainda não havia avançado continentes, estive em Trujillo -uma cidade litorânea do Peru- e experimentei a receita mais caseira desse prato. A luz fraca da cozinha ampla da tia do guia, que nos acompanhava naquela viagem, ajudava a não prestar atenção nas precárias condições de higiene em que nosso jantar era preparado.

Tanto o peixe, cortado em pequenas tiras, como os mariscos eram tão frescos quanto você pode esperar de uma cidade que vive da pesca. A água onde tudo era lavado, porém, deixava dúvidas e, para driblar a inapetência que se anunciava, tentávamos nos lembrar de que as pessoas que viviam ali preparavam aquele jantar exatamente da mesma maneira há gerações! O que poderia haver de errado nisso?

Cebola picada e outros temperos simples iam sendo adicionados, até que a cozinheira acrescentou o ingrediente final, que espantou de vez os últimos resquícios de preocupação com uma possível digestão complicada: o limão. Santo limão! No ceviche, ele serve para "cozinhar" o peixe cru e dar o toque final no prato -nós ainda contávamos com sua capacidade de acabar com todas as prováveis impurezas que assombravam nosso jantar.

Mergulhados naquele forte suco cítrico, os nacos de peixe e marisco iam ganhando sabor enquanto nossa anfitriã finalizava o preparo das batatas -outro motivo de orgulho da mesa peruana (acredite: a batata é original do Peru, que produz mais de 200 tipos diferentes do tubérculo). Vinte minutos depois (o tempo de "cozimento") estávamos saboreando um jantar delicioso, sem qualquer preocupação de que aquilo poderia fazer mal à saúde dos convivas.

Recentemente voltei ao Peru, para passar o Natal com amigos -e foi fácil perceber que o ceviche, agora já com reputação internacional garantida, tem lugar de honra nas mesas do país.

O prato permite inúmeras variações. Descobri isso no primeiro dia da viagem, quando chegamos famintos a Lima -e atrasados para o almoço. O que nos deixou apenas uma opção: os restaurantes do shopping mais agitado da cidade, o Larcomar.

Localizado na dramática costa de um dos bairros nobres da capital, Miraflores, seus restaurantes, bastante informais, oferecem uma vista estupenda do mar. Escolhemos um lugar sem pretensões para comer -na verdade, um dos poucos que ainda estavam abertos -, e fomos logo pedindo "planchas" de comida. Enquanto tomávamos os primeiros "pisco sauer" e galões de Inca-Cola (o refrigerante nacional, que tem cor de material radioativo e gosto de bala Soft), chegou a primeira delas, trazendo um espetinho com uma carne de sabor peculiar e textura curiosa -que depois de termos comido muito e debatido se era contra-filé ou fígado, descobrimos se tratar de coração de boi.

TODOS POR UM
A revelação provocou resposta imediata: avançar em direção a outra "plancha", uma espécie de rodízio de ceviche - não é só o molho que pode variar (de um simples "rosè" ao curry leve), mas também o peixe: geralmente linguado, mas pode ser pargo e outras espécies de peixe branco, ou atum, vieiras e até camarões. A "brincadeira" era adivinhar a combinação proposta. Mesmo descontando nossa fome -e o trauma de ter comido o tal coração-, comemos "con gusto" o que achávamos que seria nossa melhor refeição em Lima... Porém, aquele delírio de sabores seria superado, com louvor, no jantar, quando decidimos comer num dos melhores restaurantes da cidade, o Rafael.

As opções eram muitas -especialmente agora que a culinária peruana foi "descoberta" pelo mundo. Quase fomos no famoso Astrid y Gastón -que já tem filiais em Madri e outras capitais da América Latina-, mas como algumas pessoas já o conheciam (eu mesmo já havia visitado o de Santiago, no Chile), optamos pela "novidade". E pegamos carona na indicação do chef brasileiro Carlos Siffert, que recomendou o restaurante do amigo e colega Rafael Osterling. Não nos arrependemos.

Instalado em uma casa modesta e com uma decoração discreta, o Rafael era um agito só quando chegamos -e a presença naquela noite do fotógrafo Mario Testino, de passagem por Lima para celebrar o Natal com sua mãe, só tornava a atmosfera ainda mais intensa. Mas nada poderia ter nos preparado para o que estávamos prestes a experimentar. Começando pelo martíni de maracujá (acho que tomei uns dois, mesmo antes de sentarmos à mesa) e terminando por um festival de sobremesas de fazer inveja aos melhores "pastry chefs" de Nova York.

Mas, entre o drinque e um creme de amêndoas e rosas...pedimos quase tudo o que havia no cardápio e provamos cada iguaria - pegando uns dos pratos dos outros. Comemos um polvo do outro mundo, um "lomo saltado" estupendo, um ravióli de manga com frutos do mar, um atum com "ají" (o ingrediente picante da cozinha peruana), uma espécie de sopa de abacate com sashimi, vieiras com alho, tiras de linguado com ouriço, foie gras assado com vinho do porto, figos e alcachofras -ah, e alguns ceviches... esses sim, os melhores da temporada peruana.

Andando de madrugada por Miraflores, na volta para o hotel, depois de uma experiência tão maravilhosa, Lima parecia um dos lugares mais cosmopolitas do mundo. Eu ainda experimentaria outros ceviches nessa viagem. Mas foi aquele do Rafael -entre todas as delícias de lá- que me fez entender o prestígio que a culinária peruana conquistou nos últimos anos. E que não vai se apagar tão cedo...

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