São Paulo, domingo, 30 de agosto de 2009

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FINO

Ney Matogrosso, quase 70, corpinho de garoto, cabeça feita

por JACKSON ARAUJO

CORAZÓN BANDIDO

Com um disco mais cool e recatado saindo do forno e prestes a estrear no cinema como o Bandido da Luz Vermelha, o cantor fala de vivências transformadoras e da alegria de experimentar uma nova carreira aos 68 anos.

Ney Matogrosso é mitológico. Permite inúmeras leituras sobre suas diferentes personas. Como bicho de chifres, carneiro sagrado, ofereceu o corpo seminu como oferenda; um trovão a sacudir estruturas musicais e comportamentais em plena ditadura militar. Depois caíram máscaras; surgiram barbas por fazer na figura subversiva do foragido da lei, com peito peludo e faca em punho ("Bandido", de 76). Veio então o nu frontal no meio de rosas brancas ("Feitiço", de 78). E soltou a voz. Latina, amazônica, nordestina, brasileira. De cara limpa, falando de amor, surgiu essencial, despido de alegorias, em jeans e camiseta ("Beijo Bandido", 2009). Básico, como quis ser fotografado na intimidade de sua casa para as fotos que ilustram esta entrevista.

Ao utilizar o corpo como plataforma de experimentação para sua arte, Ney sempre esteve nu, aberto a disseminar uma cultura musical ímpar. É pesquisador com a curiosidade investigativa de um Mario de Andrade, que segue vasculhando arquivos de ontem e hoje para compor uma trilha sonora que se confunde com a sua própria história. Ora urbano, ora sertanejo; no samba ou no tango; às vezes lírico, outras, debochado; tribal ou solitário. "Recatado e espalhafatoso", assume.

Ator, aprendeu no palco que cada dia é novo. Camaleão, tudo nele se renova. Aos 68 anos –35 de carreira–, Ney Matogrosso recebeu o desafio de interpretar o personagem criado pelo cineasta Rogério Sganzerla em 1968. Em fase de montagem e previsto para estrear em 2010, "Luz Nas Trevas - A Revolta de Luz Vermelha", dirigido pela viúva de Sganzerla, Helena Ignez, e Ícaro Martins, o último roteiro escrito pelo diretor símbolo do cinema marginal traz Ney no papel de Bandido da Luz Vermelha.

Depois do álbum e do show "Inclassificáveis", que resgatavam a veia extrovertida e a energia pop que lhe deram fama, prepara para outubro o lançamento de "Beijo Bandido", em que soa mais romântico e retoma um visual clean.

Sem medo da morte, ignora o fim e sabe que o cinema perpetua no tempo a própria vida. "É uma nova possibilidade que se abre pra mim. Não é interessante ver que, aos 68 anos, posso começar uma outra coisa?".

NEY BANDIDO

Sendo um artista que sempre inspirou a liberdade, como é se colocar na pele de um homem aprisionado? Um exercício interessante. Não só por me colocar na pele de um aprisionado, mas por ser cinema, que é o extremo oposto de estar no palco. O filme tem um texto muito interessante. Luz Vermelha é um revoltado contra o sistema carcerário, contra a política, contra o governo. Então me dá muito prazer falar aquele texto, pois concordo com muita coisa que ele diz.

A atitude que ele assume perante o sistema carcerário confere uma importância política ao filme? Sim. Ele fala o que nós já sabemos, que ali dentro ninguém se educa. Tem um momento em que diz que ficou 30 anos preso e não aprendeu nada. Como é que uma pessoa fica presa 30 anos dentro de uma cadeia e não aprende nada? O filme questiona muita coisa: políticos corruptos, a atualidade do Brasil... Que já não é atualidade, é tema recorrente.

Há revolta em Luz. Há alguma revolta em Ney Matogrosso? Sim. Eu não sou uma pessoa satisfeita com o mundo a que assisto. Acho esse mundo em que a gente vive ignóbil. Credo! Dá vergonha de ser humano. E seres humanos que se acham o ápice da criação? Puta que os pariu! Vamos ver apenas um jornal da noite para ver do que o ápice da criação é capaz. Eu não posso ser satisfeito. Não sou uma pessoa cega, um carneirinho.

Qual bandido, ou bandidos, residem em Ney Matogrosso? Eu me sinto muito atraído por esse arquétipo. Nasci numa fronteira do Brasil, e as fronteiras do Brasil são de bandidagem. Mas é um padrão meio romântico, é aquele que está na capa do disco, meio cigano, uma pessoa meio sozinha, andando armada, que acende fogueiras... Seria mais um cangaceiro glamouroso.

O NOVO DISCO

Como surgiu o novo álbum? Inicialmente, eu queria gravar músicas que gravei com outras pessoas durante esses 30 anos e que não entraram na minha caixa ["Camaleão", de 2008] por diversas razões; porque não acharam a gravação original, porque não conseguiram autorização, enfim... Daí foram surgindo músicas inéditas, que achei que eram compatíveis com o momento, e regravei "As Ilhas", do Piazzolla, que tinha gravado no meu primeiro disco ["Água do Céu - Pássaro", de 1975] e que só existe nele, nunca cantei ao vivo.

O que muda do disco anterior para o novo? "Inclassificáveis" era pop rock, extrovertido. Aí eu senti necessidade de uma coisa mais recatada. É esse meu movimento de expansão e retração. Esse é mais sofisticado, quase jazzista, eu diria.

O visual é mais minimalista também? Eu uso um terno cinza clarinho, paletó de seda meio prateadinho. É um terno masculino , mas não é social; é um terno de dançarino de jazz. Ele é todo mais justo, muito benfeito, eu posso fazer o que quiser, e os ombros não saem do lugar. Foi feito por um alfaiate cobra de São Paulo, o Camargo. E uso uma leve maquiagem nos olhos.

PARABÓLICA

O que você está escutando de música? Eu não escuto muita música. Gosto mais de ler.

E o que lê? Agora, um romance da Virginia Wolf, "O Quarto de Jacob", que me deram de presente de aniversário. Eu nunca tinha lido nada dela antes.

Você se interessa por algum artista em especial ou vai acompanhando parabolicamente vários? Eu vou por todos os lugares, mas gosto da inglesa louca, a Amy [Winehouse], adoro ela. Acho interessantíssima, sem falso moralismo. Ela é uma pessoa de verdade, como era a mais maravilhosa de todas pra mim, Billie Holiday.

Billie é uma inspiração? Tenho uma admiração por ela desde a primeira vez em que ouvi. A sinceridade no cantar, eu busco isso.

PAZ E AMOR

No filme de 68, Janete Jane é a prostituta que leva o espectador a penetrar no íntimo do bandido. Seria, então, o momento do amor o único que pode mudar uma rotina de violência? Talvez... O amor de verdade desarma as pessoas.

Esse é um conceito hippie? É um conceito humano (risos). Eu acredito na força disso. É que a palavra está muito banalizada. Você fala amor e ninguém sabe o que é. Generalizando, claro, as pessoas acham que amor é para trepar. Não é só isso. É muito maior.

E o que é? É você estar no planeta em harmonia com ele. Isso é amor. É você zelar pelo planeta. Essa é a maior prova de amor que a gente pode dar. Sem ter certeza de nada, sabendo que não vamos ficar aqui e ainda assim cuidar dele.

Essa relação com a natureza permeia toda a sua obra, não? Eu fico louco com a natureza. Não preciso nem de droga. Meu sítio fica dentro da Mata Atlântica. Ali eu tenho a plena convicção de que eu estou dentro de um organismo vivo. Você só percebe isso quando não é mais do que ela.

Sua experiência com o Daime contribuiu para essa consciência? Quando eu fui tomar Daime no Amazonas, viajei três dias de canoa dentro de um igarapé até chegar ao lugar. Saía às 6h, pegava a canoa com motorzinho. Quando ia anoitecendo, aquilo ficava cheio de jacarés, e eu pensava: bom, se acontecer alguma coisa aqui e eu morrer, até que alguém descubra já não restará nada, porque na primeira noite os jacarés já terão me comido. Então, não tem muito como você querer nada, almejar grandeza na vida, porque tudo pode acabar num segundo. Eu tenho essa consciência e carrego comigo isso o tempo todo. Quando se tem isso, você tenta ser um ser humano melhor.

Como foi seu processo de autoconhecimento no Daime? Foi uma experiência transformadora. Toda a droga que eu tomei a vida inteira não me transformou tanto quanto o Daime. E eu sempre tomei droga com foco no autoconhecimento. Nunca foi pra ficar doido e dançar em boate. Toda droga que tomei não me colocou no patamar de compreensão de mim mesmo como o Daime foi capaz. Você não coloca em palavras, coloca em ação. Aquilo é organizado por seringueiros, os hinos passam conceitos universais porque são conceitos humanos ditos de uma maneira simplória, com palavras erradas até. Quando eu tomava ácido, tinha muitos "insights", mas, quando a viagem acabava, eu não me lembrava. No Daime, quando um conceito bate, se você tem alguma questão, estaciona naquilo até ter a compreensão total.

Alguma lembrança reveladora? Eu não tive crise de 30, 40, 50, mas minha adolescência toda foi uma crise só. Então, eu me vi com 13 anos, gritando no portão da minha casa no Mato Grosso, numa crise, proclamando para o universo: "eu não preciso de amor de pai e mãe, eu não preciso do mundo, quero que o mundo se foda!" E criei uma couraça, que só foi desfeita quando eu tinha 45 anos, no Daime. Aqui [aponta para a pélvis], eu era liberado; aqui [cabeça], eu era liberado, mas aqui [coração], que ninguém se aproximasse. No Daime, trabalhei essa questão. Então, quando a coisa ficava na minha mente, eu dizia, não é na mente, é aqui, no meu plexo cardíaco. Ali, era o meu bloqueio. Quando liberei, tudo ficou bom.

E o que aconteceu? Fiquei mais receptivo, amoroso, acessível. Meus amigos diziam: "nossa, a gente te abraça, e você endurece". Meu bloqueio era no sentimento. Desbloqueou. Agora eu estou todo funcionando: sexo, cabeça e emoção. Mas precisei viver muito pra chegar nesse acordo comigo mesmo.

Já fez análise? Não. Mas fiz o Fischer-Hoffman, que é uma terapia em que você tem que matar o pai e a mãe de porrada.

E como você matou pai e mãe? O Fischer me deu a resolução. Eu não sabia dessa importância deles [os pais]; a gente nem nota, mas eles vão massacrando a gente. O Fischer era um levantamento do massacre. Era muito louco. Eu tinha que escrever 150 defeitos do pai e da mãe. Pensei: "Isso é impossível, não vou achar". Na primeira vez, voltei lá com 15. E me disseram: "Ih, se não achar pelo menos 80, nem volte". Ai você vai lembrando: "Você não merece nada"; "eu não sou sócio da Light"; "você está comendo manteiga demais", "não sabe o esforço que eu faço por você"... Tudo o que eles jogam na nossa cara quando somos crianças vamos absorvendo. Eu descobri no Fischer que meu pai tinha dito que eu não merecia nada e eu acreditei que não merecia nada.

MORTE E VIDA

Você tem medo de morrer? Não.

Já se sentiu perto da morte? Não, mas já vi a morte ao meu redor, já morreu gente nos meus braços. Naquele momento, você não tem mais nada para dar além de seu coração aberto.

O que mudou depois disso? A experiência da morte me deixou mais crédulo. Eu acredito muito mais no que eu não vejo, porque não dá pra acreditar no que a gente vê no mundo ao nosso redor, né?

Você pensa em parar? Só vou parar quando eu for impedido. Tem tanta coisa que me interessa ainda. Por exemplo, essa história do cinema. Estou com 68 anos, e se abriu uma nova possibilidade pra mim. Não é interessante? Ver que, aos 68, posso começar uma outra coisa?

O que é a velhice? A velhice é quando você se fecha para qualquer possibilidade. E eu não sou fechado, sou completamente aberto. Não só para isso, mas para tudo, para a vida. É muito bom chegar aos 68 anos totalmente aberto para a vida. Então eu acho que eu não estou velho, porque ainda me sinto disponível para começar uma outra história.

Colaborou Micheline Alves

Memorabilia

Coleção de memórias de Ney Matogrosso

LUGAR: "O Mato Grosso (do Sul). Mais precisamente, a fazenda do meu avô, em Bela Vista, fronteira com o Paraguai, onde nasci e passei a infância"

MÚSICA: "Meu pai ouvia muita música, cresci escutando os grandes cantores das décadas de 40 e 50. Na época, eu achava aquilo uma chatice, mas hoje eu agradeço, porque essa foi minha grande formação musical. Francisco Alves, Orlando Silva, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, Lana Bittencourt, Jorge Veiga, Moreira da Silva (foto), Marlene, Emilinha... Ouvia todos eles no rádio o dia inteiro"

FILME: A primeira vez que fui ao cinema foi aos seis anos, com uma professora. Era um filme de Tarzan e, em determinada hora, rolava um incêndio. Saí correndo, achando que era o cinema pegando fogo. Depois, adolescente, matei muita aula vendo filmes. Um deles foi "Os Amantes do Tejo" (de Henri Verneuil, 1955), que tinha a música "Barco Negro", com Amália Rodrigues. Marcou tanto que gravei no meu primeiro disco"

ÍDOLO: "Na adolescência, Marlon Brando, James Dean e Marilyn Monroe (foto)"

LIVRO: "Minha primeira leitura foi uma revista que tinha os personagens Reco Reco, Bolão e Azeitona ("O Tico-Tico", sucesso nos anos 50). Li também os livros do Monteiro Lobato, o ‘Sítio do Pica-Pau Amarelo’"

BRINCADEIRA: "Pula carniça (como se chama no Rio a brincadeira em que uma criança fica de quatro enquanto as outras pulam sobre ela). Fui uma criança muito solta, brinquei muito na rua, livre"

COMIDA: "Não me lembro de nenhuma que tenha me marcado muito. Na minha infância tinha comida normal, arroz, feijão, bife, comida do dia a dia"

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