São Paulo, domingo, 30 de agosto de 2009

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CAPA

Preta Gil, a caminho do estrelato com suas próprias pernas

POR ANA RIBEIRO - FOTOS DEBBY GRAM

PRETA GIL

Quase famosa por sua música, ela vai deixando de ser "a filha de Gilberto Gil"

Vida de preta é difícil

É osso duro ser a Preta que a Preta quer ser. Preta Maria Gadelha Gil Moreira, 35, 82 quilos, 13 tatuagens, três vezes descasada, um filho adolescente, batalha para ser reconhecida como cantora, respeitada como artista, mas tudo o que tem recebido como resposta é entulho e palavrão. Vai pagando o preço da imagem que ela mesma ajudou a construir: superficial, destemperada, falastrona, inconsistente, pegadora, bissexual, surfista da fama da família com uso abusivo da imunidade de ser filhinha de papai.

Mas Preta é mais ela. Quando de seu primeiro CD, "Prêt-à-Porter" (2003), fez para o encarte fotos sem roupa, peitos à mostra. Na entrevista de lançamento, não quiseram nem saber das músicas: só se fazia pergunta sobre a reação de seu pai, então ministro da Cultura. "Não posso acreditar que, por ser gordinha e ter assumido minha bissexualidade, eu tenha de ter essa patrulha pesada em cima de mim. Quiseram me transformar na Neusinha Brizola do governo Lula", diz.

O fato é que Preta faz a festa dos mexeriqueiros, indo à praia de biquíni ou respondendo a tudo que o perguntador quiser ouvir. "Já falei demais em entrevistas, minhas declarações ficaram maiores do que eu. Mas eu sou exibida, gosto de dar entrevistas.

A gente fala e repensa a vida. Por isso eu digo: 'não faço terapia, dou entrevistas'". Tudo isso é dela mesmo, Preta não renega o que diz. O ônus, porém, é a dificuldade de provar que é mais do que uma capa, um rótulo, um estereótipo. Lá dentro, há, sim, uma alma autêntica de artista, uma cantora verdadeira –alguém acredita? Poucos se dispõem a acreditar, ela sabe –e sofre: não é fácil ser Preta.

Para fazer esta reportagem, Serafina passou quatro dias acompanhando Preta Gil em casa, no estúdio fotográfico, na rua, num teste de roupa, no palco. No primeiro dia, ela estava em casa (um apartamento classe média em São Conrado, no Rio). Era uma segunda-feira e ela voltava da praia, onde passara o dia com amigos. Estava exultante, como se tivesse se libertado de um demônio. Há muito tempo não ia à praia, substituindo esse hábito por anêmicos (e anônimos) banhos na piscina do condomínio. "Fui criada na beira do mar. Nasci no Rio, fui para Salvador com um ano e ali vivi até os seis, quando meus pais se separaram e vim morar com minha mãe no meio do 'bafo' de Ipanema. Chegava da escola e ia pro mar. Pois hoje completei um ano, sete meses e oito dias sem pisar a areia."

Enquanto vai experimentando as roupas que usaria no dia seguinte, na festa do 16º Prêmio Multishow de música (para entregar o troféu da categoria melhor show), Preta conta por que ficou tanto tempo longe da praia. No ano passado, foi fotografada levando um caldo que quase arrancou o seu biquíni na praia de Ipanema; as fotos se espalharam pela TV e internet, e ela chegou a ser chamada de "baleia encalhada". Ela superou o episódio, mas, de novo, a um custo. "Tem gente que não gosta de ir à praia comigo. É o caso do meu filho de 14 anos, Francisco. Ele fala: 'pra quê? Para aparecer em todos os jornais amanhã?'"

O DJ Zé Pedro, amigo de muitos verões, tece a defesa. "As pessoas não levam a Preta a sério –e até acho que não devem levar mesmo. Mas isso não a invalida como artista. Preta Gil não pode ser tratada como mulher samambaia. Ela tem toda uma história de família, tem cultura, não foi jogada do nada na piscina da celebridade. Merece respeito. Ela encontrou seu formato, é cantora e muito mais, e faz graça da própria imagem."

Sua assistente lhe trouxera uns dez modelos para experimentar. Entre as grifes –Cavalli, Diane von Furstenberg, Prada –, Preta vibrou com um longo preto, da marca Issa, que alonga seu corpo, tem efeito emagrecedor e um decote no jeito. Está ali o vestido que ela procurava. Quando ouviu o preço, ficou branca: R$ 4.000. A segunda opção era um Alberta curto, cinza drapeado, com mangas curtas e cintura pronunciada. R$ 1.800. Preta pensou um pouco, sofreu um pouco, decidiu pelo mais barato. "Amei o vestido preto, mas amo também a minha conta bancária." (No dia seguinte, seu nome figurou na lista das mais mal vestidas da noite. Preta deu risada).

ILUSÃO DE FELICIDADE

Desde pequena, Preta trabalhou pela ideia de ser artista, cantora. Fez curso de canto e dança, teatro no Tablado, oficina de atores da Globo. Ia bem nesse rumo quando, em 1990, em função de uma tragédia em casa, engavetou o sonho e foi arranjar emprego na publicidade.

"Meu pai e minha mãe [que é irmã da primeira mulher de Caetano] tiveram três filhos. Pedro, eu e Maria. Com a separação, nós ficamos com minha mãe. Então, em 1990, com 19 anos, Pedro morreu num acidente de carro na Lagoa."

O acontecimento descompensou a família toda, e Preta Gil foi então para o mundo dos negócios. "Eu era sócia da Monique Gardenberg na Dueto Filmes, produtora de comerciais e videoclipes. Ganhava dinheiro, tinha casa, carro, motorista, babá, cartão de crédito, viagens. Foram 12 anos nisso, tudo muito bem, mas eu andava infeliz. Estava enganando a mim mesma..."

Acabou na terapia (inclusive para frear o que ela chama de "os delírios de consumo de Preta Gil") e, sete anos atrás, fez o que considera sua aposta definitiva. Vendeu o que tinha, voltou para a casa da mãe (já com o filho, Francisco, fruto do primeiro de seus três casamentos, nenhum oficializado: cinco anos com o ator Otávio Müller, quatro com o roteirista Rafael Dragaud, um com o ator Caio Blat) e gritou para si mesma: "sou Preta Gil, 'entertainer', cantora, 'show-woman', artista."

MÊ-NÊ-PÊ

A não ser que a porrada seja desproporcional, Preta está acostumada a levantar e a dar de volta. O primeiro confronto com o mundo foi aos seis anos, na mudança da Bahia para o Rio. "Em Salvador, a gente era 100% hippie: vivia em rua de terra, andava descalço, dormia em tatame, comida macrobiótica. Ia a uma creche de 30 crianças. No Rio, vim morar em apartamento, fui matriculada numa escola de 5.000 alunos, uniforme, essas coisas. Eu e meus irmãos éramos os únicos negros, meu pai era 'aquele maconheiro', as mães não deixavam as filhas se aproximarem. Na primeira vez em que a professora me pediu para recitar o abecedário, fiz como na Bahia: a, b, c, d, é, fê, guê... As crianças caíram na gargalhada. Saquei ali que tinha de vencê-los ou eles me esmagariam. Essa lição levo comigo".

Preta é sempre mais preta. Depois do primeiro CD, " Prêt-à-Porter", lançou o segundo, "Preta"; o programa de TV que apresentou na Bandeirantes era "Caixa Preta"; o show que a tem consagrado na noite carioca é "Noite Preta"; o bloco de Carnaval, que sairá pela primeira vez no ano que vem, "A Coisa Tá Preta". Só não conseguiu pretejar dois papéis em novela, uma da Globo (Vanusa), outra da Record (Helga). "No bloco de Carnaval, a coisa tá preta porque tá boa. Quero tirar a conotação negativa dessa expressão", diz.

Há dois anos, Preta estreou o show "Noite Preta", com apresentações semanais no Rio. Canta músicas de seu repertório, faz versões de funks desbocados e também diverte, provoca, mexe com todo mundo. "No resto do Brasil, tenho de pedir licença para tocar as músicas do meu repertório, mas, no Rio, o público conhece as letras de trás para frente. Não tenho problema em cantar músicas dos outros, ser quase cover. Faço um show baile, um show festa, quero animar a galera." E dá-lhe 'Baba Baby', da Kelly Key; 'Doce Mel', da Xuxa; 'Burguesinha', do Seu Jorge; 'Chupa Que é de Uva', do grupo Aviões do Forró. "Sou toda trabalhada na baixo-estima, vivo me botando para baixo. Mas reconheço minha capacidade de interagir com a platéia. Eu conquisto qualquer platéia que aparecer na minha frente."

DE GRÃO EM GRÃO

Começou na Cinemathèque, boa-te com 200 lugares. Lotou. Passou para o Espaço Laranja, 700 lugares. No início do ano, foi para a The Week: 3.000 lugares, com lotação esgotada. Preta hoje tem empresário, manager, assessora de imprensa, produtor executivo, fãs-clubes (sim, vários). Diminuiu o ritmo dos shows no Rio, porque anda com dificuldade para conciliar sua agenda com compromissos assumidos pelo país. Em outubro, dias 21 e 22, vai gravar ao vivo na The Week o DVD do show, com participação de seu pai, Lulu Santos e Ana Carolina.

Preta Gil, 35, 82 quilos, 13 tatua-gens, três vezes descasada, um filho adolescente. Enfim, artista de verdade?

Colaborou Micheline Alves

BOX

"Quero fazer música para ela"

POR gilberto gil

Não vejo muito uma Preta que não se saiba, que não se conheça. Ela é exposta em todos os sentidos. Os impulsos amorosos, a sexualidade, a afetividade, a sociabilidade, tudo nela é muito público. Ela é assim, a vida toda. Com quatro anos de idade, já fazia os shows dela, armava palcos no quintal de casa quando vinham Caetano, Dedé, os avós, a família. Nas feijoadas de domingo, sempre teve gosto por fazer da vida elemento do entretenimento. É uma "entertainer", como dizem os americanos.

É muito difícil para Preta, por traço de personalidade, definir um caminho único de expressão. É difícil que a música dê conta disso completamente, porque ela é muitas ao mesmo tempo. Quando insistiu em concentrar o foco na música, eu mesmo disse: bobagem, você faz música entre outras coisas. Preta é pós-moderna nesse sentido. Como todos os talentos contemporâneos, ela é multidisciplinar, mistura música, teatro, variedade, cabaré, vaudeville.

Essa coisa de cantar em boates não é só original na carreira dela: vem na esteira das novas expectativas. Essa dinâmica, essa sociabilidade cosmopolita, atual, se adequa muito à personalidade dela. Ela está adaptando uma coisa que está aí, muito forte, como tendência. Disc-jóqueis, baladas, noites longas, festas que vão até o raiar do dia. Um tempo atrás, a vida noturna, de shows, de teatro, começava às oito da noite. Agora começa à meia-noite. Ao eleger esse formato de show, ela está muito adequada a essa tendência atual.

O que ela precisa é de uma arrancada profissional mais defintiva. Agora ela tem que ser sustentável artisticamente, programaticamente, financeiramente. E é natural que isso aconteça, a própria maturidade já recomenda isso, já informa nessa direção. Ela agora tem um talento reconhecido, já mais respeitado, atrativo, que as pessoas procuram.

Durante muito tempo ela me pediu músicas para gravar, e eu disse não. Não que fosse uma questão desconfortável. O que eu achava é que ela precisava caminhar um pouco mais, construir a própria história. Mas agora eu quero mesmo fazer música pra ela.

Ela está fazendo um híbrido muito interessante, com funk, samba. Os músicos demonstram o prazer de tocar com ela, de se submeter à curadoria dela. Preta é uma grande curadora. Continua fazendo teatro, quer a televisão, mas a música foi o que mais amadureceu. E aí já dá pra eu pensar em me meter nessa história. Agora faz mais sentido compor para Preta. E ter Preta em meu trabalho. Ou estarmos todos, eu, Preta, José, Bem, Francisco, toda a família numa coisa só. No último show dela, já foi assim: ela, dois irmãos, o filho e um sobrinho no palco. É uma família e tanto.

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