São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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FINA

Poeta do Invisível

por CARLA RODRIGUES

Da infância na favela ao doutorado em letras, a trajetória de exceção da escritora mineira Conceição Evaristo

Ela tinha nove anos quando começou a trabalhar como doméstica. Corriam os idos de 1950, em Belo Horizonte, a capital mineira que Conceição Evaristo só trocaria pelo orgulho do primeiro emprego ela exibia no portão, mostrando a quem passasse seu uniforme impecável.

Hoje, aos 63 anos, é com o mesmo prazer infantil que ela apresenta o quarto de empregada do pequeno apartamento que divide com a fi lha, a irmã e um cachorro no Rio: repleto de livros, o cubículo de quatro metros quadrados é onde Conceição mantém uma biblioteca de títulos, principalmente de literatura, sua paixão desde criança. “Essa biblioteca é meu grande orgulho”, diz, enquanto tentar organizar as prateleiras fi xadas na parede que, de forma mais ou menos caótica, acomodam também os exemplares de suas próprias obras, editadas no Brasil, nos EUA e na Alemanha.

Para uma mulher que nasceu na favela Pindura a Saia, em Belo Horizonte, e começou a ler para conferir o rol de roupa lavada a ser entregue para a patroa, ter publicado dois Poeta do invisível romances –“Becos da Memória” e “Ponciá Venâncio” (ambos da Mazza Edições)–, mais a sua pequena biblioteca, o título de mestre em literatura pela PUC-Rio e o doutorado que está cursando na Universidade Federal Fluminense são grandes feitos. Que, no entanto, permanecem quase invisíveis e não a livram de ter de enfrentar o preconceito dos que ainda olham para uma mulher negra esperando que ela seja apenas a continuação daquela jovem doméstica uniformizada no portão.

A mulher do porteiro
“Presto muita atenção para não embarcar no papel de subalterna. Preciso sentir que tenho o direito de estar onde estou”, reflete, lembrando-se das inúmeras vezes em que já foi confundida com ladra, doméstica, prostituta ou analfabeta. Professora municipal aposentada, concluiu o curso normal em Belo Horizonte e se mudou para o Rio de Janeiro em 1973, deixando para trás uma família de nove irmãos. Na capital carioca, formou-se em letras na UFRJ, casou-se e teve uma fi lha. Jamais deixou de produzir: “Becos da Memória” estava pronto desde 1988, e foi escrito quando o marido trabalhava como zelador de um edifício, na zona sul carioca.

“Nunca me encaixei no papel de mulher do porteiro, mas sempre tive paciência para suportar situações difíceis, que são passageiras”, diz ela, com a mesma candura com que brinca com a fi lha, Ainá, portadora de uma síndrome genética que a faz, aos 27 anos, apresentar desenvolvimento de uma menina de sete.

Em 2003, Conceição publicou o romance “Ponciá Venâncio”, tirado da gaveta porque ela fez um empréstimo de R$ 4 mil para pagar os mil exemplares da primeira edição. Hoje, “Ponciá” é um sucesso de vendas que já bateu a marca dos 20 mil exemplares. “É uma literatura sintonizada com as demandas do povo negro e, em certo sentido, busca falar por ele. Além disso, é uma fi cção de rara beleza, com momentos de pura poesia”, diz o professor de literatura da UFMG, Eduardo de Assis Duarte. “Ela é uma preciosa contadora de histórias vividas em ambientes de exclusão”, afi rma a professora Maria Nazareth Soares Fonseca, da PUC-MG.

Conceição se lembra de ter crescido ouvindo histórias sobre a escravidão, mas nunca quis fazer memórias pessoais. “Quero escrever fi cção como se estivesse escrevendo a verdade”, diz. Sua entrada na literatura se deu pela poesia, em 1978, nos “Cadernos Negros”, revista anual que compila o melhor da produção afroliterária.

Nem por isso a qualidade do trabalho de Conceição é consenso no universo literário. “Li o romance ‘Ponciá Venâncio’ e alguns textos publicados nos ‘Cadernos Negros’. Não fi quei impressionado literariamente. Mas a história pessoal de Conceição, de favelada a doutora em letras, é sempre impressionante, num país de desigualdade infame como o Brasil”, avalia Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp.

Depois dos dois romances, ela volta à poesia: “Poemas da Recordação e Outros Movimentos” chegou às livrarias no mês passado, pela editora mineira Nandyala. A batalha por um espaço no restrito mercado editorial fez com que Conceição, mesmo já reconhecida pelo público, pagasse metade dos custos de edição do livro. “As editoras sempre dizem que se interessam por boas histórias, mas nem sempre essa afi rmação se sustenta. No momento em que o leitor for motivado a ler autores negros, o cenário tende a mudar. Não é o que já está acontecendo com os livros da Conceição?”, interroga, otimista, a professora Maria Nazareth. A resposta positiva para a questão alimenta a sensação de vitória de Conceição Evaristo, mas não aplaca todas as suas ambições: “Ainda está pouco”.

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