São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ATRIZES

Moças da Coxia

por SÉRGIO ROVERI e GEORGETTE FADEL

Afinadas, mas nem sempre no mesmo tom, cinco jovens atrizes de teatro falam sobre os prazeres e as durezas da vida no palco

Não há registro de que elas já tenham sido obrigadas a alterar seus afazeres para fugir dos paparazzi, interromper as refeições para dar autógrafos em guardanapos ou improvisar sorrisos artificiais diante de celulares com câmeras. Também não consta, ao menos até a presente edição de Serafina, que elas já tenham se surpreendido diante da própria imagem na capa de alguma revista. Assim, libertas das obrigações inerentes ao universo da fama, elas têm encontrado, cada uma a seu modo, tempo e disposição para impulsionar suas carreiras em um tipo de teatro ligado à pesquisa, à ousadia e ao trabalho de grupo. Um tipo de teatro que, a exemplo do trânsito e da vida noturna, está adquirindo cada vez mais os contornos de São Paulo –com tudo que isso pode representar de bom ou nem tanto.

É nesse teatro, eclético a ponto de se acomodar tanto num espaço nobre como o Sesc Vila Mariana quanto num porão mal iluminado da praça Roosevelt, que estas cinco atrizes encontraram o tom exato para a sua voz –ainda que essa voz seja empregada para conversar com um ganso, no caso de Fabiana Gugli, 34, no espetáculo “Terra em Trânsito”; seja sedutoramente patética como a de Ana Andreatta, 37, em “A Festa de Abigaiu”; ou de uma estridência impressionante, no caso de Paula Arruda, 29, em “O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade”. Junte-se a elas Cléo de Páris, 36, a musa loira que o teatro dos Satyros importaram do Rio Grande do Sul, e Paula Cohen, 34, com seus lábios de Brigitte Bardot usados para falar textos de Plínio Marcos e Gero Camilo, e teremos uma amostragem bastante heterogênea de que pode faltar dinheiro ao teatro, mas no quesito mocinhas ele vai muito bem das pernas.

Em uma tarde de novembro, enquanto a chuva castigava mais uma vez as ruas da cidade, as cinco se reuniram no camarim do Espaço dos Parlapatões para uma discussão nem sempre convergente sobre o ofício de atriz. No mundo do teatro, o que elas fizeram durante aquelas duas horas poderia ser chamado de processo ou improviso; na publicidade, seria um “brainstorm” e, no resto do mundo, apenas uma deliciosa demonstração de como é bom não ter papas na língua. O encontro das atrizes marcou a estréia de Georgette Fadel, Prêmio Shell de melhor atriz por “Gota d’Água - Breviário” e no momento vivendo uma deslumbrante Elizabeth I na peça “Rainha[(s)]”, no papel de entrevistadora: “Que seja publicado aqui que as diferenças entre estas atrizes são grandes, que uma não concorda com a outra em vários pontos”. Os depoimentos das atrizes, nas páginas a seguir, comprovam que o pedido de uma rainha é uma ordem.

Ana Adreatta, 37

Estréia no palco: “Rosa de Cabriúna”, supervisão de Antunes Filho, em 1986

Julieta ou Medéia: Betty Boop

Um bom diretor é aquele que: te ajuda a transpor seus limites

Antes de entrar em cena eu: respiro e peço licença

Me tira do sério no palco: falta de generosidade

Em princípio, não faria: personagem indígena, pacto de morte com minha amiga-atriz Mila Ribeiro

Eu sei que as políticas públicas de incentivo ao teatro são falhas, mas o patrocinador particular também manipula demais. Eu já fui obrigada a trabalhar do jeito que o patrocinador queria. O grupo em que eu estava fez pesquisa, estudou, e então o patrocinador chegou e disse: ‘Não vai ser assim porque eu estou dando a grana e quero de outro jeito.’ Sempre existe uma pressão muito grande por parte de quem libera o dinheiro. E muitas vezes estamos sujeitos a esses humores porque o ator de teatro tem tão pouco reconhecimento... Um dia, temos trabalho; no outro, não temos nada. Sei que isso é reflexo de uma situação global, mas no nosso caso há o agravante de não termos uma organização de classe. O importante é estar aberto, no campo profissional, às coisas legais que possam aparecer. E a televisão pode ser uma coisa legal, desde que ela surja para conciliar e não para excluir.”

Fabiana Gugli, 34

Estréia no palco: aos 5 anos, dançando como abelhinha

Ainda vou fazer: um filme com Woody Allen, um musical com Tom Zé e turnês mundiais com a Cia de Ópera Seca.

Julieta ou Medéia: Medéia Material

Um bom diretor é aquele que: dá gargalhada com seus atores, tem uma incrível criatividade e inteligência, cabelos cacheados e compridos, um narigão enorme...

Antes de entrar em cena eu: repasso trechos da peça mentalmente, convoco os deuses do teatro e faço xixi

Me tira do sério no palco: fazer a peça quando estou morrendo de dor de cabeça

Sabe o que falta no teatro brasileiro? A vaia. Fico fascinada quando vejo uma ópera no exterior e o público vaia um cantor ruim. Aqui tudo é aplaudido de pé, sempre. Não há nada pior do que um ator ruim em cena, você fica constrangido. E ninguém tem coragem de vaiar, somos submissos demais. Eu tenho maneiras muito particulares de lidar com a minha profissão. Não me sinto autorizada a falar sobre leis de incentivo, por exemplo. Seria leviana. Posso falar apenas por mim e pela companhia que eu represento, a Cia. de Ópera Seca. Eu acredito na utopia e é disso que vou atrás. Acredito na inconformidade e na atitude de meter a boca em tudo isso que está aí. A gente vive num mundo de certo e errado, sucesso e não-sucesso. São conceitos tão maniqueístas e bestas de se viver. Quero celebrar a disponibilidade que o artista tem de poder errar.”

Paula Cohen, 34

Estréia no palco: “Antes do Café”, na Escola de Arte Dramática, em 1998

Ainda vou fazer: um solo com os meus textos

Julieta ou Medéia: Medéia

Um bom diretor é aquele que: percebe de fora o que de dentro você não enxerga

Antes de entrar em cena eu: me concentro para me conectar com as sutilezas da travessia

Me tira do sério no palco: gente que entra no teatro com o coração fechado

Em princípio, eu não faria: uma peça dessas preconceituosas que fazem humor a partir da humilhação

Quando a televisão não estimula o seu ator contratado a fazer teatro, ela está boicotando a qualidade do seu próprio produto. Porque é no teatro que se aprende, que se experimenta. O teatro tem toda a permissividade do mundo, ele existe para mexer com as pessoas, libertá-las e inspirá-las. São perrengues mil que já passamos e vamos continuar passando para poder subir ao palco toda noite. Eu sei que nós, atrizes de teatro, estamos na contramão do movimento do mundo, que diz que a gente tem de ganhar dinheiro, ter posses e segurança. A gente não tem nada disso, mas mesmo assim vai vivendo e conquistando coisas aos poucos. Não existe nada tão generoso quanto o teatro, porque ele oferece a chance do dia seguinte, uma nova chance para tentar acertar.”

Cléo De Páris, 36

Estréia no palco: “Love Hurtz”, direção de Zé Adão Barbosa, em 1995

Ainda vou fazer: “Gritos e Sussurros”, do Bergman, no teatro

Julieta ou Medéia: Medéia

Um bom diretor é aquele que: cuida, que não abandona o espetáculo nunca, que observa, fica atento

Antes de entrar em cena eu: rezo para São Jorge

Em princípio, não faria: não engordaria nem emagreceria 30 quilos para fazer um personagem

Adoro fazer parte de um grupo, sinto-me amparada. Mas nem sempre essa segurança é suficiente para debelar minha crise pessoal. Confesso que ainda tenho medo de errar e sinto que somente a ousadia é capaz de fazer frente ao medo. Por outro lado, é nos momentos de crise que me fortaleço. Às vezes, penso que essa crise é específica dos atores de teatro, que quem faz televisão está imune. Eu tive a chance de ver se isso é verdade. Ano passado, fui convidada a fazer um teste para uma minissérie. A produção insistia que, caso eu fosse aprovada, precisaria ter disponibilidade total. E eu respondia que isso era impossível. Até que um chefão da emissora ligou para me perguntar se eu tinha me dado conta de que receberia o suficiente para ficar à disposição deles. Então eu respondi: ‘o que você chama de suficiente para que eu largue a vida que eu tenho?’ Caso reste alguma dúvida: eu não peguei o papel.”

Paula Arruda, 29

Estréia no palco: “Filme Triste”, de Vladimir Capella, em 1993

Ainda vou fazer: cinema

Julieta ou Medéia: Julieta

Um bom diretor é aquele que: sabe o que quer e te dá liberdade para criar

Antes de entrar em cena eu: aqueço corpo e voz e me junto aos companheiros de cena para desejar “merda”

Me tira do sério no palco: falta de concentração e energia baixa

Em princípio, não faria: novela, mas sou daquela opinião, “nunca diga nunca”

Aprendi nos meus poucos anos de carreira o quanto é importante a confiança no diretor. A confiança em você mesma, no entanto, é fundamental. Se um diretor apostou em mim e quis trabalhar comigo, por que eu não apostaria? A cabeça é muito forte nesse momento. Se você acha que não vai conseguir, não vai mesmo. Acho fundamental trabalhar com gente do bem, com pessoas que vão estar ao seu lado mesmo em caso de fracasso. E odeio quando surgem boatos e rixas dentro de um elenco. E, quando esses problemas ocorrem, eles afetam o público, sim. É muito comum que as pessoas falem, hoje, sobre funções específicas do teatro. Eu não sei se necessariamente o público tem de sair de uma peça com alguma opinião formada, prefiro que ele saia com questionamentos. Não vejo problema no teatro que apenas diverte, que deixa feliz uma pessoa que naquele dia estava carregada de tristezas e problemas pessoais.”

‘Saí da entrevista com fome’ por Georgette Fadel

Gostei de entrevistar as companheiras. Na verdade, não sei se foi o que eu fiz. Eu, numa tarde de novembro, vestida de trânsito e de ensaios, tentando brecar o ritmo acelerado e olhar de fora e verdadeiramente para elas, mas sou tão de dentro que a vontade foi de não perguntar nada e sair improvisando, dançando, dando muita risada pela cidade afora. Conheço a maioria delas e sei que são boas “brincadoras”, e isso já dá água na boca. Penso logo: se eu tiver que perguntar, só vai sair pergunta cretina. Vamos cantar? Mas isso seria impublicável... Quando o Sérgio fez a primeira pergunta, a inadequação total se dissolveu e me lembrei de que pensar e falar é dançar e cantar.

Lá pelas tantas, as polêmicas estavam na mesa e eu queria era dizer o que achava do que elas estavam falando. Difícil calar, difícil conviver com o diverso. E, ao mesmo tempo, o que importa mais que isso? Saber viver mergulhado na certeza de que cada homem é livre, constrói sonhos e jeitos múltiplos de existir e aí é que a vida pega fogo.

A conversa pegou fogo. São atrizes da mesma geração e, embora seja uma tentação, não se pode, através delas, ou dessa conversa curta, deduzir tendências, quadros, panoramas do que é estar hoje e aqui e ser mulher e no teatro. Em comum, a convicção de que estamos interligados, que a poesia vai tecendo os fios entre nós. Saí da entrevista louca, com tudo ainda por conversar, teria que passar muito tempo com cada uma para ficar satisfeita, mas aí a palavra satisfeita já me lembrou porcos bem-alimentados para serem vendidos e comidos. Achei bom ter saído com fome.

Texto Anterior: PESSOA FÍSICA: Eliane Catanhêde
Próximo Texto: FINA: Conceição Evaristo Carla Rodrigues
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.