São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

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CAPA

Martinho da Vila acredita ter composto seu samba mais perfeito para o Carnaval deste ano

por ALICE GRANATO

SANTO FORTE

Martinho está em festa: com quase 72 anos, pai de oito filhos e avô de dez netos, ele apresenta o samba-enredo de sua escola, a Unidos de Vila Isabel, lança dois discos e se aquece para o Carnaval com shows no Canecão

Se você estiver passando pelo bairro de Vila Isabel, zona norte do Rio, e perceber um burburinho, gente pedindo autógrafo, querendo fazer fotos, pode ter certeza: Martinho da Vila está por ali. Às vésperas de completar 72 anos (faz aniversário em 12 de fevereiro), o sambista compôs para o Carnaval deste ano o samba-enredo de sua escola desde 1965, a Unidos de Vila Isabel. O samba é uma homenagem ao centenário de nascimento de outra figura ilustre do bairro, Noel Rosa.
Martinho recebeu Serafina em seu ponto cativo, uma mesa de bar, servido de jiló e chopinho e tratado carinhosamente pelos garçons como "patrãozinho". Cantor e compositor popular, Martinho também é conhecedor de música erudita, tem dez livros publicados e, no dia desta entrevista, foi homenageado com um almoço na Academia Brasileira de Letras. Pai de oito filhos (cinco deles estarão em seu novo disco, "Lambendo a Cria", com lançamento previsto para março) e avô de dez netos, o compositor acredita ter feito um dos seus sambas "mais perfeitos" na homenagem a Noel.
Nascido em Duas Barras, na Serra Fluminense, filho de lavradores, Martinho chegou ao Rio aos quatro anos. Hoje, é proprietário da fazenda em que seus pais trabalhavam, aonde vai para relaxar e ouvir o canto dos pássaros. Com shows marcados no Canecão nos dias 6 e 7 de fevereiro, Martinho finaliza ainda outro disco, cantando Noel Rosa. O sambista ainda tirou a camisa para esta sessão de fotos –coisa que, segundo sua assessora há mais de dez anos, ele nunca havia feito. "A Vila vai pegar fogo neste ano", diz Martinho, rindo.

Cem anos em uma resposta: do samba de Noel ao de hoje, o que mudou?
Os sambas não eram urbanos, eram mais de favela; os temas eram mulher, filhos, trabalho, falta de grana, a chuva que caiu, o luar da favela. A favela era romântica. Com Noel, o samba ganhou outra temática. Ele foi mesmo o grande revolucionário. Antigamente, existia apenas um jeito de fazer samba. Hoje, só o partido alto tem umas três ou quatro maneiras de se fazer, há várias formas de samba-enredo, samba-canção, samba de breque... Isso é bom para o samba, para quem ouve e para quem cria. Nada fica igual, tudo vai se transformando, o importante é manter a essência.

E o Carnaval, como fica num antes e depois?
As coisas mudaram. Enriqueceu por um lado, foi prejudicado por outro. As escolas de samba absorvem tudo hoje. As coisas não acontecem mais naturalmente, é tudo previsto. Antes, a escola ia para o desfile e a gente não sabia exatamente como estava a nossa ala, quantos componentes tinha. Nem a gente, nem o carnavalesco, nem o presidente, nem ninguém. Era tudo improvisado, as costureiras faziam as fantasias cada uma a seu modo, era um acontecimento. Hoje tudo é muito padronizado. A base das escolas é a organização. Cuidar para que tudo funcione. E a grande questão do desfile é tudo funcionar conforme o previsto.

O samba ficou em segundo plano?
Não, o samba está em primeiro plano. Numa escola de samba, em primeiro lugar está o enredo. Se o enredo for uma fábrica de vidro, o petróleo, o pré-sal, fica difícil o compositor se apaixonar... Se você tem enredos como a história da Academia Brasileira de Letras, a de Machado de Assis, a de Noel Rosa, você já fala: "Esse enredo aqui é bom". Um bom enredo gera um bom samba. Com isso, a bateria toca melhor, os componentes tocam com mais vontade, desfilam com mais entusiasmo, o público participa mais.

A vibração do público é o termômetro de um bom samba-enredo?
Muitos acham isso, mas é uma coisa com a qual eu não concordo. Nos últimos anos, as escolas só pensam em levantar a arquibancada. Se fosse assim, eu teria de fazer meus shows sempre com batucada, marchinhas, sucessos. Não! Posso fazer um show mais introspectivo e muito mais emocionante. No desfile da "Kizomba" [a Vila Isabel foi campeã do Carnaval carioca em 1988 com esse samba], teve momentos em que a arquibancada estava muda. Todo mundo encantado, pensando "o que é isso?", tinha gente que chorava.

E ter de resumir Noel Rosa em um samba, como foi?
Muito difícil. Eu poderia ter feito um samba que falasse: "Viva Noel Rosa! O maior compositor que já tivemos!". Mas não. Eu pensei: tenho de falar da vida do Noel, e também da morte dele. Tenho de arranjar um jeito de falar disso de uma maneira bonita, que flua. É complicado. Mas o enredo era bom, né? (risos). E o Noel me ajudou pra caramba de lá, com certeza.

Que tal o resultado?
Talvez seja um dos sambas mais perfeitos que já fiz. Eu tinha de falar tudo do Noel, do romântico, do boêmio, do sedutor, da sua posição contra os preconceitos, da ligação dele com o morro... E o samba ainda tem de empurrar a escola para cantar em grupo, é mole?

Por que você decidiu se mudar da Vila Isabel para a Barra da Tijuca?
Moro na Barra da Tijuca, mas o meu centro ainda é a Vila Isabel. Meu escritório é aqui. A minha mulher quis ir pra lá, mas moramos no subúrbio da Barra, a zona rural de lá. Seria um "off Barra". Ainda não me acostumei a dizer que estou indo para casa quando vou pra lá.

E quanto à boemia, você segue a cartilha dos músicos cariocas?
Tomo chope quando vou a um bar. E adoro quiabo e jiló para acompanhar, carne-seca, aipim frito, hummm... Também aprendi a gostar de vinho. É a pior bebida que existe, pois é que nem a música: você aprimora o ouvido e não gosta mais de música ruim. Um vinho ruim estraga o jantar. Mas eu escolho pelo lado direito... (risos). Fico de olho nas marcas e no preço. Vinho bom, pra mim, é aquele que bate bem. E não acredito quando dizem: "Martinho, você está como vinho, quanto mais velho, melhor". A pessoa não está me elogiando, é mentira. Vinho mais velho estraga (risos).

Mas para não estragar, como é que faz?
(Pausa. Chama o garçom e diz: "quero mais um chopinho"). Acho que a pessoa tem mesmo é que ter sorte. Tem gente que não bebe, não fuma, não come gordura e não tem saúde. Dei sorte de ser uma pessoa de saúde, mas nunca me cuidei muito. Quando aparece um probleminha, eu cuido. Eu digo "êpa, vou falar com o homem de branco lá..." (risos).

Você está em estúdio com dois discos, em um deles ("Lambendo a Cria"), cinco dos seus oito filhos participam. Como é trabalhar em família?
É muito legal porque são todos muito talentosos, de verdade. Ruim é aquele filho que a gente quer que vá por ali, e não vai; ou aquele que não é, mas quer ir. Meus filhos são talentosos, mas mesmo assim fica uma preocupação. A arte não é feita como profissão, é transitória. Poucos podem ter a arte como profissão. Não pode pensar "vou ser uma estrela, vou acontecer, meu disco vai arrebentar". Aí é uma tortura, pois depende muito de sorte. A Mart'nália (cantora de 44 anos, segunda filha de Martinho), quando estourou, eu pensei: "será que ela vai saber administrar o sucesso?" É difícil, muito difícil. Mas ela foi. Ela é que nem eu, não está nem aí. Quando a pessoa se preocupa demais, tem de cuidar do cabelo, da voz, da roupa, de botar um sapato, fica uma tortura. Ela não se preocupa com nada disso, ela se garante. É tipo eu. Ela é essência. Quem vai ser muito sucesso também é a Maíra (23, sexta filha). Fiz tudo para ela estudar só música erudita e não se meter em popular, mas ela é do pessoal daqui, né? Então, além do erudito, samba e canta pra caramba.

Você tem um lado erudito que poucas pessoas conhecem. Tem dez livros publicados...
Eu admiro e entendo de música erudita. Em tudo o que eu entro, vou a fundo. Tem muitos artistas que ficam só no seu gênero. Quem é do samba só fica ali. Não vai ver um show de rock, um concerto, e fica com a cabeça limitada. Eu sempre fui muito curioso, daí a gente acaba gostando. Escrever é pior, uma agonia, mas também um desafio. E adoro desafios.

Para fazer samba com beleza é preciso mesmo um bocado de tristeza?
Isso é uma grande poesia, grande música, Vinicius era gênio. A frase é verdadeira. Mas, para fazer um samba, com certeza, tem de ser totalmente alegre também. É uma coisa muito profunda. Tem muitas afirmações que são poeticamente corretas. Mas não tem fórmula para fazer samba.

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