São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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FINO

Um homem verdadeiro

por NOEMI JAFFE

Quem é o professor que com maestria e nenhum alarde formou toda uma geração de intelectuais e artistas paulistanos

Cumprimentar Flávio di Giorgi não tem convenção nem banalidade, como, aliás, nada quando se está com ele. Estender a mão e dizer seu nome é se lançar numa aventura etimológica, porque Flávio, o professor em si, está sempre nos ensinando que nada, nada mesmo, é aleatório. Fui sua aluna no final dos anos 70, no curso de literatura grega, na USP. Ele é aquele professor de quem ninguém jamais se esquece.

Fazia dez anos que não nos víamos. E lá vamos, o professor e eu, para a expedição do nome Noemi. “Na verdade não é um nome exatamente hebraico. É anterior, egípcio, e a localização da língua é a terceira catarata do Nilo.” Quando nos sentamos, ele não me oferece água, mas água de coco. Em sua casa, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, só se oferece água de coco. É preciso servir muito bem os hóspedes e não comer nem beber nada antes que eles se sirvam. “Hóspede vem também do árabe e é aquele que, nesse momento, fez-se querido de mim. Em termos de gentileza, os gregos e romanos aprenderam muito mal com os árabes.”

Flávio di Giorgi oferece água de coco porque é saudável, é brasileiro e porque sua hospedagem provém de valores árabes, porque eu me fiz querida dele naquele instante e porque ele realmente faz com que eu me sinta assim. O professor –que também ensinou literatura latina na USP, teologia na PUC e dava aulas no Colégio Santa Cruz– é helenista (filosófico e racional; árabe), bom anfitrião e ancestral, e também profundamente cristão: “Deus não dá talentos que não sejam para o bem dos outros. Meu cristianismo é heteróclito, vem de Bizâncio, de Constantinopla, de Hépata, da Armênia, do sul da Índia, do que hoje seria a Bessarábia, do começo da Sibéria e de Leningrado, somos os cristãos de Kiev”.

Aula no jardim

Ele me pergunta se já estive em Kiev, na Ucrânia, fala do frio substancial que faz nessa cidade e arremata esse cristianismo heteróclito, arcaico, pré-institucional, com uma história linda de um evangelho apócrifo, mais uma parte do imenso conhecimento que ele domina e faz transitar: “Uma lenda conta sobre um homem que estava à morte e percebeu, muito tempo antes, que iria morrer. Esse é um dom doloroso, mas, ao mesmo tempo, honroso e lindo, porque conseguia fazer com que as pessoas, alertadas sobre a possibilidade iminente da morte, animassem-se. E, por se animarem, curassem-se”.

As coisas são assim com Flávio. Uma história é bela, mas só o é mesmo se contiver valores cristãos e humanistas que ajudem os homens a viver melhor. Não basta prever a morte, é preciso se animar?–carregar-se de alma para se responsabilizar por uma vida melhor.

Pergunto a esse professor que transformou a vida de tanta gente o que é ser professor. “É uma coisa muito simples. Simplória, mais do que simples. Não gosto de ser um professor institucional”, diz. “Às vezes, eu cansava de dar aulas na sala e ia dar aulas no jardim. Gosto de ver o entusiasmo –entusiasmo, ter Deus dentro de si– das crianças. Aprender é o entusiasmo. É dançar sobre um vulcão, mas, muito mais do que isso, é amar a dança sobre o vulcão. Essa frase, ‘dançar sobre o vulcão’, é do general Petain. Quando os soldados se mostravam felizes por terem vencido uma batalha, ele dizia: ‘Perdemos a batalha principal. Agora, acharemos que somos invencíveis e perderemos por excesso de autoconfiança. Estamos dançando sobre um vulcão’.”

Beleza indispensável

Mais do que dançar sobre o vulcão, ele continua, é preciso amá-lo. “Ver que há outras perspectivas, ganhar a lição de que estamos nos aventurando no desconhecido, de que não conhecemos o real. Aventurar-se é a primeira condição para aprender”, diz ele. Mas faz uma consideração: aprender não é somente receber o que foi dado como um biscoito gostoso. “Se a criança para na degustação da guloseima, ela fica só na excitação do sabor. Mas saber é sabor, prazer e é também dor. Saber e sabor têm a mesma origem. Se o saber não for gostoso, ou se o sabor não causar alguma dor, que é a hora em que ele ameaça terminar, o sabor e o saber unidos não produzirão uma coisa nova. Juntos, produzem o conhecimento.”

É certamente por isso que as três cirurgias para retirada de tumores cerebrais que, para os médicos, deveriam tê-lo deixado em estado vegetativo, não foram suficientes para diminuir o saber, o sabor e o entusiasmo do professor.

No intervalo para tirar as fotos, Flávio se senta numa poltrona, diz que esse é o melhor lugar da casa e conta que seu neto de sete anos sempre aponta aquele lugar para que o avô se sente. “As crianças sabem tudo. Essa é uma estranha verdade. Nós, pretensiosos adultos, achamos que o saber deve ser dividido em pedaços. A criança não. Elas têm o sentimento em estado bruto, a intuição, que é anterior ao saber, mas superior a ele. As crianças têm a beleza indispensável.”

Antes de ir embora, dessa conversa de que é impossível ir embora, peço que ele diga um poema, o primeiro que lhe vier à mente. Ele começa a recitar “Renúncia”, de Manuel Bandeira: “Chora de manso e no íntimo... Procura / Curtir sem queixa o mal que te crucia: / O mundo é sem piedade e até riria / Da tua inconsolável amargura. / Só a dor enobrece e é grande e é pura. / Aprende a amá-la que a amarás um dia. / Então ela será tua alegria, / E será, ela só, tua ventura... / A vida é vã como a sombra que passa... / Sofre sereno e de alma sobranceira, / Sem um grito sequer, tua desgraça. / Encerra em ti tua tristeza inteira. / E pede humildemente a Deus que a faça / Tua doce e constante companheira...”.

Saio da casa de Flávio di Giorgi acompanhada de alegria, água de coco, admiração e alento. Aqui,?Diógenes não teria a menor dificuldade em encontrar um homem verdadeiro.



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