São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

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entrevista

Psicólogo que aborda em livro experiência de dez anos varrendo ruas narra o cotidiano de humilhação social e invisibilidade vivenciado por trabalhadores braçais

Ser invisível atordoa

Carolina Costa
editora do Sinapse

Fernando Braga da Costa, 29, tinha 19 anos quando experimentou a invisibilidade pela primeira vez. Vestido de vermelho da cabeça aos pés, o então estudante de psicologia passou despercebido por colegas de classe e amigos ao atravessar um corredor no prédio do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo). A experiência o deixou perplexo: como não foi visto "fantasiado" daquele jeito? O nó na garganta foi tão atordoante que Costa fez fotos daquele momento único, como se com elas registrasse também sua existência.
O impacto dessas impressões deu ao hoje doutorando em psicologia social não apenas uma nova dimensão da vida de milhões de trabalhadores braçais -serviu também como um passaporte. É a realidade de dez anos de trabalhos semanais ao lado dos garis da Cidade Universitária que ele apresenta em "Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social" (Globo, 256 págs., R$ 32). Resultado de menos da metade de todo o material de campo recolhido, o livro foi escrito para ser uma dissertação de mestrado. "Era mais um pedido de socorro", diz Costa, que divide seu dia entre palestras, atendimento em consultório e aulas universitárias. Ainda hoje, durante oito horas, uma vez por semana, ele transpõe o abismo social que separa aqueles que vão à USP com livros daqueles que carregam pás, vassouras e rastelos -e não tiram os olhos do chão.
 

Sinapse - Por que você decidiu falar sobre garis?
Fernando Braga da Costa -
Eu fazia uma matéria chamada "psicologia social 2", e uma das formas de avaliação era que os estudantes assumissem um trabalho braçal, durante um dia, e descrevessem a experiência. A gente tinha um grande leque de opções, que incluía todas as profissões não-qualificadas. Veio-me à cabeça aquilo que, no senso comum, as pessoas comentam, como "nem que eu tivesse que trabalhar como lixeiro eu roubaria" ou "Fulana é tão idiota que não serve nem para limpar o banheiro".

Sinapse - Qual é o seu sentimento, ao final de um dia de varrição, quando se despede dos garis e volta para casa?
Costa -
A partir do instante em que você começa a conviver com eles, o mundo cresce. Não sei explicar direito. Hoje, eu não me sinto sozinho em lugar nenhum onde haja um trabalhador, onde haja um peão. A gente cresce, amadurece, entende diversas coisas que eles dizem, mas a mudança principal, para mim, é que me tornei um sujeito chato, se é que posso usar esse termo. Meu mundo não serve mais para mim.

Sinapse - Como assim?
Costa -
Meu trabalho me proporciona determinados confortos que não me sinto à vontade para usufruir. Recentemente, troquei de carro. Não por um carro zero nem nada, mas por um belo carro. Saí da agência me sentindo muito bem com aquela conquista. No primeiro semáforo em que eu parei, vi um senhor de uns 60, 70 anos, em uma Brasília que nem pára-brisa tinha. Eu me senti um completo idiota. Sabe-se lá quantos anos aquela pessoa trabalhou -muitos mais do que eu, certamente, e com mais dificuldade. Se vou a um restaurante, não fico à vontade. No restaurante, você não conhece a pessoa que prepara sua comida, não pode agradecer, não pode elogiar. Fica do seu lado um sujeito, um garçom, esperando você pedir mais um refrigerante ou uma porção de batatas fritas, em vez de ele estar sentado com você, conversando. Enfim, meu ambiente começou a se tornar opressivo para mim.

Sinapse - Quantos garis participam da varrição na USP?
Costa -
Quando o grupo foi grande, éramos 12 pessoas para varrer a Cidade Universitária inteira. Quantos quilômetros quadrados tem a USP? Deve ser uma coisa gigantesca, porque uma volta inteira de bicicleta dá 15 quilômetros. Num prazo de dois, três anos, essa turma de 12 pessoas passou a variar de seis a oito, no máximo. Todos são contratados como ajudantes de serviços gerais, não como varredores ou garis. Fazemos de tudo: recolhemos cachorro atropelado, limpamos fossa, tiramos barro de não sei onde, retiramos esterco, terminamos uma determinada obra -somos direcionados para qualquer lado. A praça do Relógio, antigamente, era um descampado. Nós fizemos a reforma.

Sinapse - Os garis se organizam de alguma forma para conseguir melhores condições de trabalho?
Costa -
De forma geral, o capitalismo faz com que as pessoas sejam desunidas. Você tem de trabalhar para comer e comer para trabalhar. Existe um exército de reserva de mão-de-obra que obriga você a aceitar trabalhar por R$ 100 porque, se você não aceitar, existem outros 30 que trabalham por R$ 50. Tudo isso já faz com que uns não vejam os outros como companheiros de trabalho e como pessoas às quais você pode se unir.

Sinapse - Quanto os garis ganham?
Costa -
O registro em carteira parte de R$ 400, mas tem muita variação: como eles são funcionários públicos, têm triênio, pontuação, essas coisas. Eles trabalham das 7h às 16h, com uma hora de intervalo para o almoço.

Sinapse - Há pausa para um cafezinho?
Costa -
Tinha, mas acabou. Não explicaram nada para os garis, nem para a gente. Esse é um dos sintomas principais de humilhação, de invisibilidade. Os garis nunca têm expectativa de que serão consultados sobre algum assunto, mesmo que isso determine coisas importantes no cotidiano deles.

Sinapse - Você recebe para varrer?
Costa -
Não.

Sinapse - O que você faz quando ouve referências pejorativas ao trabalho dos garis?
Costa -
Eu ouço o tempo todo coisas do tipo "não gosto de ir à Praia Grande porque lá só tem gente feia". Quem diz isso são pessoas muito ignorantes, que não têm sensibilidade de perceber o que de fato é beleza. Olho para meus companheiros garis e os acho lindos: barrigudos, com um tipo de bigode que talvez eu nunca usaria, com um cabelo que para a classe dominante é um cabelo ruim, mas eu os acho bonitos porque os conheço por dentro. Passei por muitas situações preconceituosas. É preciso ter sangue-frio, porque eu já teria dado muita vassourada.

Sinapse - É possível acabar com a invisibilidade social?
Costa -
Essa é uma questão política e social. Vivemos em um regime chamado democrático, mas que não é democrático de forma alguma. Democracia não combina com capitalismo. Se há pessoas submetidas a vender o próprio corpo, vender a força de trabalho para sobreviver, não existe democracia. Não tem um lugar a que eu vá dar uma palestra em que alguém não diga: "Precisamos valorizar os garis". Mas isso é entrar no discurso da ordem, num discurso ideológico. Vamos fazer o quê? Pagar R$ 10 mil por mês? Vesti-los melhor? Permitir que trabalhem só na sombra? Ainda assim, vão passar o dia inteiro condenados a varrer rua.

Sinapse - Como mudar essa situação?
Costa -
Se esses garis fizerem cursos profissionalizantes, aprenderem computação, inglês, forem colocados em outras profissões, eles deixarão de ser garis, mas a profissão continuará existindo e outras pessoas terão de se submeter a ela. A humanidade consegue fabricar foguetes que vão até Marte, como é que não se consegue uma organização social de modo que não existam homens responsáveis por recolher nosso lixo?


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