São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

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Experiências como a construção da maior enciclopédia virtual do mundo e o seqüenciamento do genoma humano via internet ganham força, envolvem institutos de pesquisa e convidam qualquer pessoa a participar da construção coletiva do saber

A trama da rede

Irineu Franco Perpetuo
colaboração para a Folha

Mais de um século antes do surgimento da internet, um lexicógrafo escocês deu um dos primeiros passos rumo ao que hoje se conhece por compartilhamento de conhecimento. Em 1879, sir James Augustus Henry Murray (1837-1915) publicou anúncios em jornais e fixou avisos em livrarias e bibliotecas pedindo contribuições para definições de palavras. Chegaram mil por dia e, em 1882, o número chegou a 3,5 milhões. O feito resultou no "Oxford English Dictionary", um dos mais antigos e completos dicionários da língua inglesa.
Com a disseminação da rede mundial de computadores, iniciativas como a de Murray parecem ter ganhado as ferramentas tecnológicas adequadas para sua concretização. Não surpreende, portanto, que a maior enciclopédia do planeta esteja baseada na internet. Criada pelo norte-americano Jimmy Whales, a Wikipedia tem versões em 160 línguas (uma delas, o português) e 450 mil verbetes em inglês, o que lhe confere quatro vezes o tamanho da versão on-line da venerável "Encyclopaedia Britannica".
O princípio da Wikipedia é totalmente aberto: a consulta é gratuita, e qualquer pessoa pode escrever um verbete, que, por sua vez, permite qualquer modificação desejada pelos posteriores visitantes do site.


Dois anos foram importantes para o desenvolvimento do sistema operacional livre hoje conhecido como GNU/Linux. Em 1983, o pesquisador Richard Stallman, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) começou as pesquisas por um sistema operacional independente de licenças proprietárias de uso, o GNU; em 1991, o matemático finlandês Linus Torvalds criou o núcleo do Linux.


A enciclopédia tem ainda um código de ética, listando "princípios de imparcialidade", "normas de conduta" e "coisas a não fazer". Em teoria, o sistema seria auto-regulável -eventuais erros e excessos seriam corrigidos pelos próprios usuários. Resta saber se, no longo prazo, funcionando nesses termos e sem um corpo de editores responsáveis por seu conteúdo, a Wikipedia terá uma credibilidade comparável à da "Britannica".
Criador da expressão "sociedade em rede", o sociólogo catalão Manuel Castells -autor de "A Galáxia da Internet" (Jorge Zahar, 243 págs., R$ 38) e da trilogia "A Era da Informação" (Paz e Terra; "Sociedade em Rede": 614 págs., R$ 65,50; "O Poder da Identidade", 532 págs., R$ 61; "Fim de Milênio", 504 págs., R$ 58), e professor da Universidade da Califórnia em Berkeley- afirma que a internet e os sistemas de comunicação equivalem ao advento da eletricidade na era industrial. "A internet não é simplesmente uma tecnologia a mais. É o sistema de comunicação sobre o qual está baseado o conjunto de nossas atividades em sociedade -agora, e não no futuro. A internet é já o centro nervoso da nossa sociedade."

Na área científica, o compartilhado ganhou visibilidade com o Projeto Genoma, desenvolvido, no Brasil, em iniciativas paralelas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
O projeto do CNPq começou em dezembro de 2000, com 27 laboratórios de biologia molecular, distribuídos em todas as regiões geográficas do país, de Manaus a Porto Alegre. Seu objetivo: o seqüenciamento total da bactéria Chromobacterium violaceum, comum nas águas do rio Negro, na bacia Amazônica.
"Foi a primeira vez que o Brasil conduziu um projeto de pesquisa integrada com essa envergadura, é um marco histórico na ciência brasileira", afirma Manoel Barral, diretor de programas temáticos do CNPq. Todos os laboratórios envolvidos realizam as mesmas atividades, visando alcançar as metas estabelecidas de seqüenciamento e de qualidade. A coordenação geral acompanha e auxilia no desenvolvimento das tarefas. Para tanto, os integrantes do projeto utilizam uma rede virtual, na qual compartilham as informações. As amostras a serem analisadas são distribuídas a partir de um laboratório central, e as informações geradas pelos grupos são enviadas para o LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica).
Já a Fapesp organizou, em 1997, a rede Onsa (sigla em inglês para Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos), instituto virtual integrado inicialmente por 30 laboratórios ligados a instituições paulistas de pesquisa, tendo decifrado o material genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da praga do amarelinho. Desde então, outros projetos análogos foram lançados pela fundação, como o Genoma Cana e o Genoma Humano do Câncer.


"Copyleft" não é sinônimo de domínio público. Ele traz quatro liberdades básicas -uso para qualquer fim, estudo de códigos, melhoria e redistribuição- e uma restrição: nenhum software dele derivado poderá se tornar software proprietário. Assim, quem virar "dono" de um software livre violará a GPL e infringirá uma licença registrada por seu autor.


"O compartilhamento é uma necessidade da ciência moderna", opina José Fernando Perez, diretor-científico da Fapesp. "É a maneira de a gente fazer de uma necessidade -a falta de massa crítica no Brasil- uma virtude -a construção dessa massa crítica pela internet."
Segundo Perez, o Projeto Genoma faz com os microorganismos um processo semelhante ao de pegar um livro e mandar uma página para cada pessoa ler. "Essa pessoa não sabe o que está escrito nas outras páginas nem a que capítulo aquela página se refere; essa informação só faz sentido se compartilhada", compara. A Fapesp tem desenvolvido outras iniciativas parecidas, das quais a mais ambiciosa é o programa Biota. Lançado em 1999, contando com a participação de mais de 500 pesquisadores, em 50 projetos de pesquisa, o empreendimento visa mapear e analisar a fauna, a flora e os microorganismos do Estado de São Paulo.
"Só é possível fazer de maneira compartilhada, porque, isoladamente, cada projeto perderia muito de seu significado. É como, em uma orquestra sinfônica, você apenas ouvir cada instrumento isolado", afirma Perez. Lançado em 1999, o programa criou, em 2001, o SinBiota, sistema de informação ambiental que reúne os dados produzidos pelos pesquisadores, abarcando, até agora, 4.000 espécies de plantas, animais e microorganismos. "É um Google da biodiversidade", equipara. A fundação ainda está lançando o programa Cinapce (Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro), na área de neurociências, também prevendo o compartilhamento. E traz em seu site, dentro do programa Tidia (Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada), o projeto Plonetarium, que fornece as ferramentas de internet para a execução de trabalhos coletivos. "É um espaço para criar muitas Wikipedias", completa.
Outro exemplo de compartilhamento envolve a Universidade de São Paulo. Trata-se do projeto Cidade do Conhecimento, que tem, desde 2001, o programa Educar na Sociedade da Informação. Segundo sua coordenadora, Lílian Starobinas, o programa é "um espaço de formação de redes para a construção coletiva do conhecimento". Integrando atividades on-line a ciclos de palestras, visitas e trabalhos de campo, a iniciativa é voltada a professores e alunos do ensino médio e já envolveu 2.700 educadores. Em 2005, foram criados 18 módulos, que incluem temas que vão da criação de games e software livre ao movimento estudantil dos anos 70.
Cada módulo tem uma dinâmica própria, construída coletivamente por especialistas da universidade e estudantes. "Há alunos que passaram a gestores de novos módulos", diz Starobinas. O módulo "Mídias Digitais e Desenvolvimento Local: Pipa e Baturité", por exemplo, visa ao compartilhamento de conhecimento entre alunos e professores brasileiros para o desenvolvimento de redes digitais no Nordeste, colaborando com comunidades como as da praia de Pipa e do quilombo de Sibaúma (ambas no Rio Grande do Norte) e no maciço do Baturité (Ceará).

Todos os esforços compartilhados dependem da internet, à qual se conecta por computadores, que funcionam com softwares. Parece lógico, assim, que o início da construção do conhecimento compartilhado esteja na criação compartilhada de programas de computador, conhecidos como softwares livres.
Software livre não é o mesmo que software gratuito. Embora não exija o pagamento de licenças de uso, seu diferencial é manter aberto o código-fonte do programa do computador. Quando o software de seu computador é proprietário, ele tem como uma das características centrais o código-fonte fechado ou oculto.
Código-fonte são as rotinas que o hardware deve seguir, escritas em uma determinada linguagem. "É como se fosse a receita do bolo que você está comendo. Sem acesso ao código-fonte de um software, não sabemos se ele faz exatamente o que ele diz fazer", explica o sociólogo Sergio Amadeu da Silveira, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), ligado à Casa Civil.


Nas licenças Creative Commons, o criador do conteúdo escolhe que tipo de liberdade concede em sua obra. Assim, na licença padrão, é possível eleger entre liberar ou não a criação para uso comercial, bem como permitir ou não modificações nela. Na licença de recombinação, as pessoas podem pegar e transformar pedaços da obra do autor para qualquer fim exceto publicidade, que é proibida. São permitidas cópias e distribuição do trabalho inteiro.


Silveira dá um exemplo simples: o Brasil tem salas de informática em pouco mais de 20 mil escolas públicas (das cerca de 170 mil entidades da rede), mas apenas 10 mil estão conectadas à internet. Ele calcula que, se o país colocar 20 computadores em cada uma das 100 mil maiores unidades de ensino, terá de adquirir 2 milhões de máquinas. Se, além de comprar o hardware, o governo gastasse com licenças de uso, "pagaria ao monopólio aproximadamente US$ 200 milhões [R$ 520 milhões] a cada dois anos". Isso se o Brasil conseguisse todos os softwares básicos por US$ 100 (R$ 260). "Por que usar esses programas proprietários se temos alternativas livres que são abertas, mais seguras e estáveis e que não enviam royalties ao exterior?"
Por deixar o código-fonte aberto, o software livre abre a chance de que todo usuário se torne também um desenvolvedor do programa, compartilhando suas soluções com outros usuários. Para Castells, "por ser um movimento de elaboração, cooperativo, aberto, de centenas ou milhares de pessoas que voluntariamente contribuem com seu interesse e sua paixão de descobrir algo novo, é evidente que, tanto como produto quanto como processo, o software livre é superior ao software comercial". O Sinapse procurou a assessoria de imprensa da Microsoft Brasil, mas a empresa não se pronunciou.

Para que ninguém transforme o software livre em proprietário e assim impeça o compartilhamento de informações, a Free Software Foundation, do pesquisador Richard Stallman, criou a GPL (Licença Pública Geral) e, com ela, o conceito de "copyleft", em oposição à proteção de direitos autorais representada pelo copyright.
O conceito de "copyleft" já transbordou para outras áreas. Dizendo-se "entusiasta do software livre", durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, afirmou: "Sou ministro, sou músico, mas sou sobretudo um hacker em espírito e vontade", complementando: "A cultura hacker é uma cultura humanista, que busca a construção da nova cidadania na sociedade da informação".
Gil foi festejado pela "Wired", revista norte-americana ligada às novas tecnologias, na edição de novembro de 2004, por ter liberado uma de suas canções dentro do espírito de compartilhamento e difusão do conhecimento, tocando em um tema muito sensível para músicos: flexibilização de direitos autorais. Para os defensores do compartilhamento de conhecimento, não é necessário que as canções de um artista ou os textos de um escritor estejam sob licença de copyright para que eles tenham seu trabalho remunerado. "O que interessa é que alguém torne isso disponível comercialmente", afirma John Perry Barlow, do Centro Berkman para Internet e Sociedade, da Faculdade de Direito de Harvard (EUA).
Barlow foi co-fundador, em 1990, da Eletronic Frontier Foudation (Fundação Fronteira Eletrônica), ONG com base em San Francisco. O raciocínio dele é que as idéias são diferentes dos produtos industriais. "Com produtos industriais, quanto mais você tivesse uma coisa, menos ela valeria; havia uma relação entre valor e escassez. Isso é falso para informação, aspecto em que a relação é entre familiaridade e valor", raciocina. "Eu posso ser o maior compositor do mundo, mas, se só cinco pessoas sabem disso, que valor isso tem? Por outro lado, quanto mais gente me conhece, mais valor tem o meu trabalho, e a melhor forma de fazer meu trabalho conhecido é compartilhá-lo com as pessoas."
"Muita gente acha que isso quer dizer que elas terão de desistir da habilidade de fazer dinheiro com seu trabalho, mas a distribuição não-comercial de expressão artística não faz mal à distribuição comercial, na verdade, tem o efeito contrário", diz Barlow.
Ele evoca sua experiência no tempo em que era letrista da banda californiana The Grateful Dead, fundada em 1965 e ainda em atividade. Se hoje é comum, em apresentações ao vivo, uma mensagem sonora anunciar que são proibidas gravações do espetáculo, a lógica do The Grateful Dead era a oposta. "A melhor coisa que nós fizemos foi permitir às pessoas que gravassem os nossos shows: o público se tornou nosso marqueteiro", conta.
Para ele, a defesa do copyright não interessa aos músicos, e sim às gravadoras. "Artistas são escravos consentidos. O que eles estão defendendo não são os seus direitos, mas os direitos das instituições que os vêm espoliando desde o começo. Quem faz dinheiro com isso não é quem cria, é quem distribui", afirma.
Barlow crê que a gradual familiarização dos músicos com a internet vai mudar sua atitude e liberar a difusão da música pela rede exatamente como é liberada, hoje, a execução em rádios. "Os artistas seguem nosso modelo quando querem ter as canções de graça no rádio. Eles querem distribuir músicas de graça pelo rádio; já na internet, só acham que é diferente porque não estão familiarizados com o meio. Eu não vejo diferença", diz.

O meio legal de liberar música e outras formas de manifestação artística sem que outra pessoa se aproprie dela tem sido dado pela Creative Commons (Comuns Criativos, em português), organização fundada em 2002, também em San Francisco, e que conta, hoje, com escritórios em Londres e Berlim. "A Creative Commons está respondendo ao mesmo problema ao qual respondeu o movimento do software livre", afirma seu criador, Lawrence Lessig, professor de direito na Universidade Stanford.
"Nós usamos licenças copyright para marcar o conteúdo com a liberdade que o nosso conteúdo tem, para que as pessoas saibam que vão poder remixar, compartilhar e espalhar uma música sem, antes, ter de entrar em contato com o autor", diz.
O exemplo de Gilberto Gil ilustra como funciona esse tipo de licença. Alguém que ouça a música "Oslodum", que o ministro liberou para compartilhamento, e queira acrescentar um solo de sanfona, poderá fazê-lo amparado pela legislação. Só não poderá usar a canção para fins publicitários.
Lessig avalia já ter licenciado cerca de 4,5 milhões de objetos, entre blogs, fotos, música e vídeo. As licenças da Creative Commons são gratuitas e podem ser conseguidas no site da organização -inclusive em português. No começo de 2005, a organização lançou a variante Science Commons. "A primeira coisa que estamos fazendo é facilitar o acesso aberto do movimento de publicação. Muitos cientistas querem deixar suas obras disponíveis livremente na internet", diz Lessig.
"Os cientistas enviam seus artigos para serem publicados em revistas que cobram uma quantia extraordinária de dinheiro das bibliotecas pela assinatura de suas publicações", explica Lessig. Assim, por exemplo, cientistas no Brasil podem contribuir para uma revista que sua biblioteca não tem condições de comprar. "O sistema está basicamente preservando o conhecimento para universidades americanas ricas, mas bloqueando-o para o resto do mundo. Nós publicaremos esses artigos sob licenças que garantem que eles estejam disponíveis de graça, na rede, internacionalmente, o tempo todo."


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