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entrevista
Pedagogo critica uso abusivo de estimulantes em crianças que recebem diagnóstico de hiperatividade e diz que contraste entre o mundo real e a escola gera alunos agitados
Os inimigos da infância
Carolina Costa
editora do Sinapse
Em entrevista, nos Estados Unidos, ao jornalista David Letterman, a atriz Penélope Cruz comentou que foi uma criança agitada e que seus pais a obrigavam a fazer atividades como balé
para que ela se cansasse. Ela concluiu o relato dizendo se sentir
com sorte por ter nascido na Espanha: se fosse norte-americana, seus
pais teriam lhe dado remédios. Histórias como essa podem espantar
os desavisados, mas não o pedagogo Luca Rischbieter, 42, mestre em
educação pela Universidade Paris 5. Ele faz parte de um número cada
vez maior de educadores que alertam pais e professores sobre os exageros da medicação que está sendo ministrada a um também crescente número de crianças consideradas hiperativas. "Muitos procedimentos podem ser explorados antes de dar drogas a uma criança", diz
o autor de "Guia Prático de Pedagogia Elementar", relançado neste
mês (Positivo, 320 págs., R$ 44). Em suas palestras, ele sugere cuidado
ao encaminhar uma criança ao psicopedagogo: "A pior coisa que pode acontecer à criança é ela receber um rótulo negativo e acreditar nele". Acompanhe a entrevista que ele deu à Folha por e-mail.
Folha - Por que você critica o uso de remédios no tratamento de
crianças tidas como hiperativas ou disléxicas?
Luca Rischbieter - Há uma enxurrada de diagnósticos precipitados
que vêm sendo produzidos por nossos psicopedagogos mesmo antes
da invenção recente do TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção
com ou sem Hiperatividade) e da Ritalina. Em um mundo cada vez
mais complexo, cheio de atrativos e com regras pouco homogêneas, é
previsível que aumente o número de crianças que não se interessam
pela escola e que "fazem bagunça", "atrapalham", "não aprendem".
É aqui que encontramos a maior parte dos candidatos a diagnósticos
precipitados, sejam eles de dislexia, disgrafia ou hiperatividade.
Folha - Por que esses diagnósticos seriam precipitados?
Rischbieter - Porque eles transformam algumas dificuldades comportamentais que podem ser facilmente contornáveis, na maioria dos
casos, em problemas inerentes à criança, em doenças ou síndromes. Isso depois de expor a criança "suspeita" a uma verdadeira via-crúcis de
exames e testes, visitas a psicopedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, psiquiatras...
Folha - Que problemas isso pode acarretar para a criança?
Rischbieter - O principal efeito que isso pode causar é abalar a auto-confiança de uma criança que já está meio assustada. Se ela escreve um
pouco errado quando seus colegas já não o fazem, é provável que seja
taxada de disléxica ou disgráfica. Se é muito agitada, pode ser avaliada
como hiperativa. Ela recebe um rótulo no qual a escola acredita, os pais
acreditam e, pior, ela própria pode acabar acreditando. O risco maior é
que a criança passe a se comportar como se fosse de fato disléxica,
agravando dificuldades que ela poderia ter superado facilmente. Há
psicopedagogos que agem como verdadeiros "inimigos da infância",
pois sabotam a autoconfiança das crianças quando deveriam ajudar a
construí-la e a reforçá-la.
Folha - Essa reação pode afetar também os adultos tidos como disléxicos ou hiperativos?
Rischbieter - Sim. Uma amiga minha, vamos chamá-la de Maria,
quando tinha uns 28 anos, convenceu-se de que era muito burra, postura que "diagnostico" como sendo de uma pessoa bem inteligente.
Gastou o que seriam hoje uns R$ 1.400 para fazer testes cognitivos. A
uma certa altura, a psicopedagoga pegou um cronômetro e passou várias continhas para a Maria resolver. Minha amiga, nervosa, se atrapalhou. O veredicto foi: "Discalculia!". Parece piada, mas eu li o relatório da psicopedagoga. Nas conclusões, tinha uma frase inesquecível: Maria "tem os neurônios preguiçosos". Minhas gargalhadas ajudaram a
refazer a autoconfiança da minha amiga, mas essa profissional, que
escreveu uma barbaridade dessas, continua por aí, tirando dinheiro
das famílias e etiquetando adultos e crianças. Infelizmente, ela não é a
única. De uns anos para cá, essas pessoas enriqueceram seu potencial
de asneiras com a supercientífica "hiperatividade".
Folha - Drogas como a Ritalina são inofensivas?
Rischbieter - Se você digitar a palavra Ritalina no Google ou se pesquisar o termo em inglês (Ritalin), vai encontrar, por exemplo, no dia
1º/7, no "The New York Times": "Ritalina pode aumentar risco de
câncer". Há uma saraivada de acusações contra a Ritalina e drogas do
mesmo tipo -especialmente uma que tem o fantástico nome de
Concerta-, associando-as a episódios de violência, surtos psicóticos, suicídio etc. Ou seja, no mínimo, há muita controvérsia e precisamos de mais pesquisas.
Folha - Como esses remédios funcionam?
Rischbieter - Eles são uma espécie de anfetamina, droga que fez sucesso entre os jovens transgressores da década de 70 e que foi muito
indicada para regime de "madame" nos anos 80, porque a pessoa ficava tão ligada que não comia. Agem aumentando a atividade cerebral frontal de um neurotransmissor estimulante chamado dopamina. Ainda é um mistério explicar como a Ritalina é capaz de acalmar
crianças inquietas, pois ela deveria excitá-las muito mais. Os neurologistas chamam isso de "efeito paradoxal". Tecnicamente falando, ela
é uma verdadeira cocaína light, pois a cocaína também age aumentando a ação da dopamina.
Folha - O que você acha dos pais que apontam melhorias com o
uso desses medicamentos em seus filhos?
Rischbieter - Há casos em que, de fato, a medicação "bate bem" e há
melhora. Muitas vezes, a criança fica como que paralisada, passa a ser
mais quieta e comportada e até melhora seu desempenho escolar,
mas ficar feliz com isso me parece algo pavoroso. E, é inegável, muitas
só pioram, ficam mais agressivas, algumas babam de verdade.
Folha - Professores alegam trabalhar com alunos desatentos ou
muito indisciplinados. Não há um problema real a ser combatido?
Rischbieter - É claro que sim. Não estou negando a existência de cada vez mais crianças com problemas escolares. Elas demonstram cada vez menos interesse pela escola porque, em casa e na rua, há lan
house, TV, computador. Além disso, o público que vai à escola não é
mais homogêneo como era, há uma explosão de modelos de família,
convívio com referenciais diferentes, falta de regras em casa.
Folha - O que pode ser feito para melhorar a vida de crianças que
têm dificuldades de aprendizado?
Rischbieter - Em muitos casos, o simples suplemento de atenção
que a criança recebe dos pais ou um reforço do enquadramento disciplinar já resolve o problema. Há estratégias que bons psicopedagogos
conhecem e que produzem resultados, como buscar caminhos alternativos para ensinar, estabelecer programas de tarefas em parceria
com a família e fazer entrevistas psicológicas para tentar entender o
fundo emocional que existe por trás de muitas dessas dificuldades.
De qualquer forma, há uma grande quantidade de procedimentos
que podem ser explorados por pais e educadores antes de decidir dar
drogas a uma criança.
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