São Paulo, terça-feira, 29 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As escolas invisíveis

José Pacheco
especial para a Folha

Perguntam os meus patrícios por que razão eu viajo tanto para o Brasil. E eu explico. Se comparadas ao Brasil, as escolas européias dispõem de melhores recursos. Porém, acumulam-se as teses sobre o mal-estar docente, sem que se vislumbre a cura para a maleita dos professores. As escolas do "primeiro mundo" converteram-se ao mundo digital, mas mantêm e reforçam práticas de ensino obsoletas. Os excelentes profissionais que elas albergam possuem saberes suficientes para romper o círculo vicioso do insucesso, mas o insucesso mantém-se e prospera. As escolas portuguesas têm meios para se firmarem como espaços de democratização, mas estão acomodadas, cínicas.


O Brasil desconhece o que tem de melhor. Uma reforma silenciosa, marginal às tentativas oficiais de reforma, está acontecendo por aí


Há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia.
Em cada viagem, junto mais uma ou duas novas escolas ao já extenso rol. No extremo norte do país, um colégio busca a forma ideal de escola que dê a todos garantias do exercício da cidadania e da realização pessoal. Num hospital do Sul, uma equipe de professores, técnicos de serviço social, animadores e voluntários suavizam os dias de crianças doentes. Num lugarejo perdido no Nordeste, a fé pedagógica faz milagres e produz um ensino que faria inveja a muito colégio (dito) de elite. Junto ao mar de Santa Catarina, crescem as paredes de uma escola sem paredes, que concretizará o sonho de um pequeno grupo de educadores.
Em São Paulo, um jardim-de-infância feito à medida da criança comove o visitante mais insensível. Na periferia da metrópole, professores e pais juntam-se a amigos e pesquisadores para dar forma a um projecto que transformou "sala de aula" em "espaço de estudo". No Rio de Janeiro, os sonhos de uma escola ganham forma, fazendo das crianças pessoas mais sábias e felizes. Sob o "mar de Minas", uma mulher empenha-se na humanização de uma academia de polícia.
Um dos obstáculos à mudança nas escolas é o predomínio de uma cultura pessoal e profissional dos professores, que os convida à acomodação. Essa cultura é reforçada pela formação que se vai fazendo. O modo como os professores aprendem é o mesmo com que ensinam. Assim como certas teorias e pedagogos permanecem invisíveis, também são invisíveis certas escolas. Mas estas por uma boa razão: uma visibilidade social precoce volta-se contra esses projectos de mudança. Poderão pensar os mais cépticos que se trata de um devaneio. Pois que pensem. O Brasil desconhece o que tem de melhor. Uma reforma silenciosa, marginal, está acontecendo por aí. Os professores que habitam as escolas invisíveis não recebem reconhecimento público. Por vezes, recebem injustiça, mas dão lições de resiliência. São mal-remunerados, mas não usam o baixo salário como álibi. Não auferem de benefícios nem aspiram à celebridade. Fazem milagres com os recursos de que dispõem, que o Brasil não é pobre em recursos humanos, ele desperdiça recursos. Os educadores anônimos que habitam as escolas invisíveis tecem uma rede de fraternidade. Geram esperança, neste Brasil condenado a acreditar que, pela educação, há-de chegar a uma cidadania plena.

José Pacheco, 53, é professor aposentado e idealizador da Escola da Ponte, em Portugal. Em 2004, recebeu a Ordem da Instrução Pública, maior premiação que o governo português concede a profissionais da área de educação. Este texto mantém a grafia original portuguesa.


Texto Anterior: O Brasil descobre Portugal
Próximo Texto: Entrevista: "Mostraremos em Enems que os alunos aprendem mais"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.