São Paulo, terça-feira, 31 de maio de 2005

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Capa

Um país de leitores não se faz apenas com muitos livros. É preciso que a população seja educada, tenha acesso às obras e sinta prazer nessa atividade. Sobre os dois primeiros itens, os amantes de livros nada podem fazer. Já em relação ao prazer, eles têm muito a ensinar

A paixão na prateleira

Luanda Nera
Estanislau de Freitas
colaboração para a Folha

Quem diz que o Brasil não é um país de leitores comete um engano. Afinal, o país ocupa um honroso sétimo lugar entre os maiores consumidores de livros do mundo. Em toda a América, só perde para os Estados Unidos. Pelo planeta, a caravana brasileira está na frente das de Espanha, Portugal, Itália e Reino Unido. O problema é que alguns brasileiros lêem mais do que os outros: 73% dos livros, no Brasil, estão nas mãos de 16% da população.
Por isso mesmo, os amantes de livros constituem uma comunidade semelhante a um vilarejo. Todos se conhecem, às vezes até se chamam por apelidos, como "rato de sebo". Em vez de ruas e casas, porém, esse vilarejo é formado por capa dura e papel amarelado. Para mantê-lo em ordem, eles dispõem de paciência, dedicação e dinheiro.
Só para se ter uma idéia, a segunda edição de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, chega a custar R$ 3.000 porque foi feita pelo próprio autor. A primeira edição de "Memórias de um Sargento de Milícias", obra muito pedida nos vestibulares, tinha a assinatura apenas de "Um Brasileiro"-Manuel Antônio de Almeida só usaria o nome nas edições seguintes. Hoje, essa obra não sai por menos de R$ 5.000.


Para um bibliófilo, a paixão não tem preço. A segunda edição de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, custa R$ 3.000. A primeira edição de "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, não sai por menos de R$ 5.000


Para achar as raridades que satisfazem seu gosto, esses apaixonados por livros não medem esforços. "O bibliófilo está sempre garimpando. Basicamente é o "viciado" por obras raras ou edições de arte", explica o fundador e presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, José Salles Neto, 56. "Interessa-nos a capa, a encadernação, as ilustrações, a dedicatória, o autógrafo, as anotações no meio do livro. Tudo é apreciado. Uma edição de arte pode chegar a [pesar] três quilos", completa ele.
Essa dedicação se explica por uma soma de sentimento e sensações. Os bibliófilos gostam do livro como objeto para ver, tocar e cheirar. "Do livro, você sente até o gosto", delicia-se o senador e ex-presidente José Sarney, 75. "Para o bibliófilo, não interessa só ler. Interessa ter", sentencia a administradora Maria Inês dos Santos, 55, uma das mais assíduas integrantes da confraria.
Criada há dez anos, a entidade fundada por José Salles Neto é a únicano país que reúne colecionadores de livros. Com 350 associados, a confraria já publicou 16 livros em edições de luxo, com tiragem numerada e limitada. Dentre eles, "O Quinze", de Rachel de Queiroz, e "Vidas Secas", de Graciliano Ramos.
"Nós escolhemos um texto clássico, um ilustrador e decidimos juntos como será a edição. O único compromisso do grupo é ratear os custos da publicação, adquirindo os exemplares. Nosso trabalho é artesanal, usamos tecnologia de cem anos atrás", explica Salles Neto. Segundo o fundador da confraria, cada folha de um exemplar de arte pode levar até duas horas para ser fabricada. Nos livros comerciais, essa operação leva menos de um segundo.
Garantir a exclusividade de seus associados é um dos propósitos da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. "Muitos ligam para cá, mas nem sabem direito o que fazemos. Por isso, procuro alertar cada candidato para que saiba exatamente aonde está entrando", conta o presidente da entidade. Salles Neto afirma, ainda, que gostar de ler ou ter o hábito de comprar livros não faz de ninguém um bibliófilo. Para ser um especialista, é preciso procurar, sistematicamente, edições limitadas ou obras raras das mais diversas especialidades. O charme da bibliofilia, segundo seus seguidores, é colecionar edições histórica, literária ou artisticamente significativas. Se forem autografadas ou contarem com dedicatórias e anotações dos autores, ainda melhor. E se a edição também tiver algum tipo de encadernação ou papel diferenciado, é elevada à categoria de "edição dos sonhos".
Mas, como sonhar custa caro e tem cada vez mais gente querendo sonhar, os colecionadores afirmam: venha preparado, porque a inflação chegou aos livros. "Embora seja uma área muito especializada, a procura vem aumentando. Os donos de sebo já perceberam e aumentaram os preços", analisa o professor de literatura Júlio Marcondes, 36. Ele, que também é um bibliófilo, é apontado por seus pares como um dos maiores conhecedores desse mercado em todo o país.


Enquanto o interesse por obras raras continua crescendo, o mercado de livros convencionais parou no tempo, estagnou. O faturamento da indústria se mantém estável desde 1998- R$ 2 bilhões


Isso acontece em um momento em que a indústria do livro está estagnada no Brasil. O faturamento se mantém praticamente estável, desde 1998, por volta de R$ 2 bilhões. O número de exemplares vendidos em 2003 é quase o mesmo de 1994: 255,8 milhões de livros. E o problema não é o preço, atualmente o maior dilema dos bibliófilos. Segundo estudo feito este ano pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), o Brasil tem, em média, um dos livros mais baratos do mundo: entre R$ 2,40 e R$ 7,50, enquanto esses números, nos EUA, oscilam entre R$ 33,50 e R$ 41, em média. O brasileiro é, também, um dos que menos compra livros por ano (dois exemplares por ano contra 11 exemplares anuais, nos EUA).
Isso gera um fenômeno inusitado. Enquanto o interesse por livros "normais" estagnou, o mercado de obras raras -e caras- não pára de crescer. "A arte de "bookinar", expressão do poeta Carlos Drummond de Andrade, está cada vez mais difícil", afirma o professor Marcondes. Segundo ele, os bibliófilos começaram a estipular valores cada vez mais altos para seus acervos, mesmo que não estejam à venda. Na maioria das vezes, não estão. "Bibliófilo não vende", diz Maria Inês. "Não tem preço. Já me ofereceram mais de R$ 10 mil por alguns exemplares, mas não cedi", afirma a administradora.
Por isso, conhecer as pessoas certas faz a diferença na hora de conseguir os melhores preços. Hoje, livro "barato", só por meio da troca. Ou quando um bibliófilo morre, o que gera um grande rebuliço tamanho é o número de interessados. O objetivo é impedir que os livros sejam leiloados, já que nos arremates é difícil competir com as universidades particulares ávidas por aumentar suas bibliotecas, com os donos de grandes sebos ansiosos por bons negócios e até mesmo com os bibliófilos recém-chegados, que não medem recursos para amealhar os livros à disposição.
"Hoje, é meio anedótico, acho que nem acontece. Mas nos anos 40 e 50, tinha gente que seguia o obituário nos jornais à procura de oportunidades de negócios", conta o livreiro Eurico Bezerra Brandão Júnior, 47.
Quem não é afeito a competição apela à troca. Como os bibliófilos têm interesses específicos, o que é raro e valioso para um pode não interessar ao outro. Enquanto o professor Marcondes "bookina" obras literárias do modernismo brasileiro, José Sarney aprecia livros que contam a história do Brasil, principalmente a do Maranhão, o ator Paulo Betti é um aficcionado por dicionários e a administradora Maria Inês busca livros de arte e obras que retratam o folclore. "Se eu encontro um livro que não me interessa, mas tem validade para outros colegas, eu compro. Depois, sempre acabo revendendo ou trocando", conta Marcondes. "Eu compro, quando posso, sempre mais de um exemplar da mesma obra. Mas não vendo meus livros. Eu só troco. É o mesmo que eu fazia quando trocava gibis ou figurinhas na porta do cinema lá em Sorocaba, minha cidade natal, quando eu era criança. Tenho, por exemplo, três edições de "O Piano e a Orquestra", do [Carlos Heitor] Cony, para trocar", explica Betti.


A primeira Bíblia impressa pelo inventor da tipografia, Johann Gutemberg, em 1455, é o objeto mais desejado pelos bibliófilos do mundo. De tão raro, um exemplar pode custar até US$ 40 milhões


Não vender livros é também uma das estratégias que os bibliófilos encontraram para afastar os "oportunistas", que compram raridades com o objetivo de ostentar. Essa prática dos "oportunistas" eleva o preço das obras, uma vez que eles não lêem nem saboreiam os livros, mas se orgulham de manter uma biblioteca lotada de obras caras. "Esses nem ao menos lêem os livros que têm. As obras só servem para decorar o ambiente. Jamais podem ser chamados de bibliófilos", sentencia Sarney.
No universo reservado dos bibliófilos de carteirinha, quase não sobra espaço para os pouco convencionais. O ex-ministro da Agricultura do governo Fernando Collor, Antonio Cabrera Filho, está acostumado a ser um marginal. Não faz parte da elite dos bibliófilos brasileiros, mas tem uma biblioteca de fazer inveja a muitos deles. Localizado em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, seu acervo contabiliza 60 mil exemplares, incluindo obras raras, como a primeira edição da Bíblia traduzida por Martinho Lutero e uma coleção de 19 documentos originais assinados por ex-presidentes norte-americanos.
O acervo de Cabrera Filho tem um detalhe curioso: toda a coleção tem caráter religioso. "Sou protestante e faço questão de me dedicar à religião. Tenho a versão original de uma carta que o [Winston] Churchill [primeiro-ministro inglês durante a Segunda Guerra Mundial] escreveu para seu irmão durante a guerra. Ela fala muito em Deus, por isso guardei [a carta]", justifica. Além de criar gado, Cabrera Filho também é diretor da Sociedade Bíblica do Brasil. Sua mais recente investida foi contratar especialistas do MIT (Massachusetts Institute of Technology) para ajudar na reforma das instalações da biblioteca, aplicando o método considerado mais eficiente para a preservação do acervo.
Apesar da inflação, nem sempre os mais abastados ganham quando o negócio é entre especialistas. O vilarejo da bibliofilia não aceita forasteiros. Segundo Marcondes, há casos em que um bibliófilo e um comprador rico entram em disputa por determinado volume, negociando com um segundo bibliófilo, mas o primeiro costuma vencer.
Há cerca de um mês, uma primeira edição de "Primavera", de Casimiro de Abreu, foi arrematada por R$ 11 mil, tendo como oferta inicial R$ 650. "Isso prova que tem gente nova no negócio. Esse é um livro relativamente fácil de achar, que todo colecionador já tem", diz Pedro Corrêa do Lago, da Fundação Biblioteca Nacional.
Mas, assim como em todos os tipos de arte, há casos que desafiam os colecionadores. A primeira Bíblia impressa pelo inventor da tipografia, Johann Gutenberg, em 1455, é o exemplo mais conhecido entre os bibliófilos. Segundo Corrêa do Lago, se aparecesse disponível no mercado uma dessas Bíblias de Gutenberg, de tão rara, ela poderia ser avaliada em até US$ 40 milhões.
Em um país em que 59% dos livros vendidos são didáticos, lidos por obrigação, os bibliófilos injetam prazer na antiga e nobre arte da leitura.


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