São Paulo, terça-feira, 31 de maio de 2005

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leituras cruzadas

O que antes era diversão para jovens com hormônios à flor da pele ganha ares sofisticados e conquista cada vez mais adeptos, ao menos entre as quatro paredes das livrarias

Pornografia ao pé da letra

Laura Schichvarger
colaboração para a Folha

Você se interessa por pornografia? Pois basta um vírus de computador e, de repente, explodirão em sua tela centenas de posições sexuais. A cada dia fica mais fácil o acesso a material pornográfico. Feiras de produtos eróticos como a 9ª Erotika Fair, que aconteceu em São Paulo, neste mês, são uma espécie de versão adulta dos parques de diversão. A pornografia, hoje, é entretenimento para quem quiser e tiver mais de 18 anos. No Brasil, em 2004, essa indústria faturou R$ 700 milhões (3,95% do PIB), segundo estimativas da Abeme (Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico).
No Brasil dos anos 50, porém, esse tipo de diversão dava muito mais trabalho e movimentava muito menos dinheiro: o rapazinho (a moça, nunca) ia até a banca de jornal e perguntava discretamente pelos "catecismos", como eram conhecidos os gibis pornográficos do carioca Carlos Zéfiro, reeditados pela editora A Cena Muda (R$ 12 cada).


Engana-se quem diz que pornografia é sinal da "degradação de costumes do mundo moderno": as paredes da cidade de Pompéia evidenciam o gosto dos romanos pelas imagens pornográficas


Zéfiro, ou Alcides Aguiar Caminha (1921-1992), era sambista e funcionário público do Ministério do Trabalho. O apelido nasceu para evitar retaliação dos chefes do escritório. Publicou 862 gibis. Nunca estudou desenho. Uma das inspirações de Zéfiro é o italiano Milo Manara, um dos mais importantes criadores de quadrinhos eróticos e autor de, entre outros, "Kama Sutra" (L&PM, 70 págs., esgotado).
De qualquer forma, inspiração não poderia faltar a Zéfiro, que apenas deu continuidade a uma longa tradição. Dos homens pré-históricos ao Império Romano, entre os índios astecas e durante a Idade Média, imagens excitantes e relatos de estripulias sexuais nunca faltaram e serviram a todo tipo de papel social: ritualístico, médico, artístico e até mesmo funcional, como meio de estimular o prazer. Mas é aí, quando se declara, que o corpo e o ato sexual viram "pornográficos", na acepção negativa e moralmente condenável do termo. Quando há algum véu de pretensão artística, essas imagens passam a ser chamadas de "eróticas".
Há várias definições de pornografia e erotismo, mas nenhum consenso. A mais despojada talvez seja a de Allain Robbe-Grillet, escritor francês: "Pornografia é o erotismo dos outros".
Um bom exemplo de como funciona a diferenciação: no Japão, até hoje, existem comemorações para a época da colheita nas quais os homens da aldeia carregam falos enormes esculpidos em madeira. Grandes réplicas de falos são colocadas nas portas das casas para trazer sorte. Isso no mesmo país em que a lei impede que os meios de comunicação mostrem pêlos púbicos ou genitálias.
Esse puritanismo paradoxal não é monopólio dos orientais. Nos EUA, na década de 70, muita gente foi parar na cadeia por "proliferar" a pornografia. Isso aconteceu no mesmo país e na mesma época em que filmes como "Garganta Profunda" se tornaram sucessos de público.
Mas engana-se quem diz que pornografia é sinal da "degradação de costumes do mundo moderno". As paredes da cidade de Pompéia, soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C. e redescoberta em 1748, evidenciam o gosto dos romanos pelas imagens pornográficas. Nos seus muros, encontram-se, até hoje, pichações como "ir irrvmator" (faço sexo oral). Entre os muitos textos daquela época que descrevem os hábitos sexuais do Império, chegaram até nós "Sátiras" (Ediouro, 141 págs., R$ 5), de Juvenal, "A Arte de Amar" (Martin Claret, 133 págs., R$ 10,50), de Ovídio, e "Satyricon" (Crisálida, 328 págs., R$ 35), de Petrônio, esse último adaptado para o cinema pelo italiano Federico Fellini em 1969.
Outro cineasta da Itália, Pier Paolo Pasolini, filmou três grandes relatos sexuais: o "Decamerão" (1971), de Giovanni Boccaccio, os "Contos de Canterbury" (1972), de Geoffrey Chaucer, e "As Mil e Uma Noites" (1974), na série que ficou conhecida como "Trilogia da Vida" (DVD, Play Arte, R$ 99,90). O último filme de Pasolini, que foi assassinado por um garoto de programa em 1975, é "Salò ou Os 120 Dias de Sodoma" (1975). Considerado um filme "perturbador", conta a história de quatro libertinos que, em 1944, escolhem os mais belos rapazes e meninas de uma cidade e os levam a um castelo para uma orgia.
Um enredo desses só poderia surgir da imaginação do homem cujo nome se confunde com a história da pornografia: Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade, autor de "A Filosofia na Alcova" (Iluminuras, 254 págs., R$ 44). Filho de conde, ele nasceu em Paris, em 1740, e foi educado pelo tio, um padre gostava de prostitutas. O marquês abusava de empregados (às vezes, com a ajuda de sua esposa), distribuía afrodisíacos em festas e agarrava a cunhada. Nas horas vagas, conversava com políticos e filósofos iluministas e discutia as idéias que, anos mais tarde, levariam à Revolução Francesa, em 1789. Só começou a escrever em 1782, aos 42 anos, quando foi preso por praticar atos de violência que hoje levam seu nome.
Da França também veio um dos mais clássicos gêneros de literatura pornográfica: o livro destinado à "educação das jovens", com diálogos entre preceptores (velhas cortesãs ou libertinos) e mocinhas da alta sociedade francesa, enfadadas com a monótona vida de excessos. Um desses livros é "Teresa Filósofa" (L&PM, 158 págs., R$ 13), de autor anônimo, que tem trechos como "Teresa faz uma feliz descoberta banhando a parte que distingue seu sexo". Mas foi o poeta Pierre Lous quem escreveu, em 1917, a cereja do bolo dessa categoria, o "Manual de Civilidade Destinado às Meninas para Uso nas Escolas" (Imaginário, 88 págs., esgotado), que dá conselhos de etiqueta como: "Não diga: "É uma menina que se masturba até morrer". Diga: "É uma sentimental'".
Mesmo com a ampla divulgação, só nos últimos dez anos a pornografia saiu do fundo das bancas de jornal para ganhar, definitivamente, o status de diversão requintada. E o grande responsável por isso, quem diria, foi o ex-presidente dos EUA, Bill Clinton. Suas tardes livres no Salão Oval chegaram às manchetes, em 1995, e o mundo inteiro acompanhou ávido os detalhes levantados pelo promotor Kenneth Starr.
Dois anos depois, uma respeitada editora francesa assumiu suas preferências sexuais heterodoxas com detalhes ainda mais precisos. O livro "A Vida Sexual de Catherine M." (Ediouro, 220 págs., R$ 32) vendeu mais de 300 mil exemplares na França, virou best-seller e encorajou os editores a investir sem medo no filão. Surgiram, em seguida, "Cem Escovadas Antes de Ir Para a Cama" (Objetiva, 157 págs., R$ 24,90), da jovem italiana Melissa Panarello, que vendeu mais de 500 mil cópias na Itália e foi traduzido para 24 línguas, e "Hell - Paris 75016" (Intrínseca, 208 págs., R$ 34), da francesa Lolita Pille, que veio ao Brasil neste mês para a Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
Pois é, a pornografia é devassa, obscena, libidinosa, despudorada, indecente, lasciva. Não dá para negar, porém: ela pode ser divertida e está na moda. Sempre esteve.


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