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Luli Radfahrer

Com as próprias mãos

Agora que a perfeição é produzida em série, os trabalhos manuais viraram manifestações de identidade

Meu ortopedista pintou a parede do quarto de seu filho que está para nascer. Profissional bem-sucedido, com uma bela clínica na Vila Nova Conceição, ele não é exatamente o tipo que se imagina munido de lixa e massa corrida. O valor da pintura, cerca de metade do cobrado por uma consulta médica, tampouco justificaria o sábado trancafiado em casa. No entanto lá estava ele, feliz no trabalho braçal.

Como ele, meninas e meninos lotam cursos de marcenaria e costura, para espanto de suas tias e avós que acreditavam em um futuro bem cosido, uniforme e alinhado, sem farpas ou agulhadas. Os mais velhos preenchem filas de espera em cursos de culinária, alegres a desossar peixes, picar cebolas e cultivar pequenas hortas de alecrim e hortelã em suas mesas de trabalho.

Polaroids e Lomos, físicas ou virtuais, fazem a festa dos fotógrafos, que se divertem com as câmaras elementares de seus iPhones e iPads, entupindo de efeitos as imagens de baixa qualidade técnica, devidamente estragadas com riscos, manchas e vazamentos de luz artificiais.

Entre os tecnófilos, ferros de soldar e osciloscópios voltaram à moda. Conectando pequenas placas de hardware aberto a motores, LEDs e displays, eles recriam o ambiente frenético das comunidades que, no final da era hippie, inventavam computadores ao imprimir placas de circuitos e conectá-los a rádios e TVs. Seus aparelhos, no entanto, são bem menos pretensiosos. Pouquíssimos chegam a ter projetos estruturados, dificilmente algum chegará a linhas de produção. Pouco importa.

Parece nostalgia, mas é tecnologia. Hoje que a perfeição é feita em série, por cadeias intermináveis de produção que eliminam do produto final qualquer indicação de sua origem, o usuário se sente desenraizado. E procura intervir nos belos objetos prontos para dar a eles uma marca de personalidade. Quando o perfeito é comum a todos, a imperfeição destaca as diferenças.

A gambiarra, que até há pouco tempo era a única forma de acesso ao que havia de belo, hoje é sinal de distinção. Agora que há roupas e objetos em excesso, remendá-los é uma forma de identificá-los. E de se identificar neles, procurando imprimir em sua estrutura ou superfície algo único, que os torne especiais como a assinatura de uma criança na sola do pé de um brinquedo.

Hoje que o mundo se tornou simbólico e matemático, que as engrenagens das geringonças foram substituídas por circuitos indivisíveis e códigos indecifráveis, a vontade de interferir é cada vez maior.

Hacking, que já foi sinônimo de criatividade e crime, hoje identifica as atitudes de quem se cansou de comprar bugigangas de todos os tipos e resolveu construí-las.

Já ouvimos essa história na música. Depois de quase serem extintos na busca pelo som cristalino, LPs voltaram como forma de identificação, marcando a personalidade única de seus maestros. O som perfeito, quem diria, não é tão rico.

Só empina a bicicleta quem está seguro o suficiente para pedalar sem as mãos. Agora que todos parecem à vontade no ambiente icônico e metafórico das ferramentas virtuais que sobrepõem abstrações ao elevar as transações digitais à nuvem, é hora de interferir na paisagem e marcar as pegadas imperfeitas que nos fazem humanos por demais.

folha@luli.com.br

ANDRÉ CONTI
escreve neste espaço na próxima semana

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