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Luli Radfahrer

Hieróglifos contemporâneos

Por que ainda clicamos em um disquete para gravar um texto? Ícones da tecnologia continuam presos ao passado

Há algum tempo telefones tinham "gancho". Termômetros eram cilindros de vidro com um pouco de mercúrio na extremidade. Mapas eram grandes folhas dobradas. Cópias eram feitas em papel-carbono. Disquetes armazenavam dados e programas. Fitas de couro, papel ou tecido marcavam livros. Fichas e cadernetas armazenavam contatos. Filmes perfurados gravavam e projetavam cenas de cinema. As tecnologias digitais eliminaram esses objetos, mas os ícones para representar suas funções permanecem.

Quando os primeiros desses onipresentes desenhinhos foram inventados, a metáfora do equivalente mecânico era pertinente. O mundo eletrônico ainda era novidade, por isso era preciso indicar aos novos usuários o que fazer. À medida que a tecnologia evoluiu, muitos aparelhos desapareceram, mas a referência persistiu. Até hoje é possível encontrar, por exemplo, ícones de gravadores de fita cassete nas secretárias eletrônicas de iPhones e smart-phones com Windows.

Como eles, vários dinossauros resistem. Calendários no estilo "folhinha", ampulhetas, TVs com botões e antenas em cima, carimbos, bússolas, bandeiras para marcação, compassos e pranchetas podem ser bastante práticos para algum burocrata dos anos 50 (ou personagem de "Mad Men") que tenha passado meio século em coma e precise operar um tablet. Para quem nasceu depois da morte do telex, esses equipamentos parecem tão alienígenas quanto um mata-borrão, uma curva francesa ou uma régua de cálculo. Sem equivalente físico para fixar a metáfora, o símbolo é aprendido como qualquer outro, e o desenho que deveria simplificar a compreensão acaba tendo o efeito contrário.

À medida que as interfaces permeiam todos os aparelhos e se tornam cada dia mais complexas e sofisticadas, aprendê-las é cada vez mais um exercício linguístico, cheio de variações gramaticais, conjugações e declinações de símbolos que trocam de cor, posição e tamanho.

A situação piora quando se constata que cada empresa desenvolve seus próprios ideogramas, mudando-os quando julga conveniente, sem tradução ou tabela de conversão. O resultado é uma gigantesca incompatibilidade entre usuários. Quem fala Canon Arcaico tem dificuldade em falar Nikon, usuários de iPhone e Android não se entendem e a Babel só cresce, espalhando-se por TVs, geladeiras, automóveis e toda a internet das coisas.

Por mais que as interfaces de hoje sejam mais claras do que suas equivalentes há 15 anos, não se pode dizer que se tornaram mais compreensíveis. A sensação é oposta, em uma confusão de referências. O universo iconográfico hoje envolve metáforas incoerentes (pranchetas como símbolo de "colar"), que convivem com velhos clássicos (microfone cromado, despertador com ponteiros e campainha) e objetos que começam a perder suas referências (envelopes, pastas e gavetas de entrada e saída). Tudo isso no mesmo ambiente surrealista em que lupas e binóculos fazem a mesma coisa e uma chave de boca é sinônimo de uma engrenagem.

A tecnologia mudou, mas os ícones permanecem, mesmo que façam pouco sentido. Daqui a pouco será necessário desenvolver uma alfabetização só para eles, pois terão se tornado hieróglifos contemporâneos de uma língua morta.

folha@luli.com.br

ANDRÉ CONTI
escreve neste espaço na próxima semana

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