São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 2011

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ANDRÉ CONTI

Questão de gênero


Conforme os jogadores envelhecem, surge uma certa ânsia em validar intelectualmente a jogatina


Sempre que alguém começa a discutir se jogos eletrônicos são uma forma de arte, o que vem ocorrendo numa frequência alarmante, sinto falta das minhas pedras no rim. Volta e meia o assunto ocupa blogs e fóruns, com fundamentalistas em ambos os lados da questão. Conforme os jogadores envelhecem -hoje a média do público é estimada em 34 anos-, surge uma certa ânsia em validar intelectualmente a jogatina, o que é compreensível, mas não torna a discussão menos aborrecida.
Não acho que precisemos dessa pompa toda, e talvez o problema seja menos distante: por que os jogos vêm se tornando, cada vez mais, tão interessantes para tanta gente? Como essas narrativas, com seus enredos e premissas frequentemente risíveis, atraem uma nação de devotos? Que tipo de demanda -sensorial, motora, intelectual, vai saber- outras formas de entretenimento e arte não podem suprir?
Ninguém joga Super Mario para salvar a princesa. Ninguém quer saber o que os cogumelos estão falando. Ainda assim, investi mais tempo salvando a princesa e conversando com cogumelos do que seria saudável confessar.
Mesmo se há personagens bem construídos e enredos sofisticados, é a segunda narrativa, aquela construída pelo próprio jogador, quando ele acerta um pulo, ultrapassa um obstáculo ou encontra uma pista, ou quando resolve conversar com absolutamente todos os coadjuvantes do jogo, que dá sentido à experiência.
Por isso os jogadores, assim como os leitores e os frequentadores de cinema, têm seus gêneros favoritos.
A diferença é que um gênero literário novo surge graças a um contexto histórico, social. Nos jogos, o impulso é quase sempre tecnológico. Os jogos de tiro em primeira pessoa não surgiram devido a uma necessidade de expressão artística de seus criadores. Surgiram porque, num determinado momento, as placas de vídeo ficaram mais baratas e mais gente teve acesso a gráficos tridimensionais.
Mas nós sabemos quem inventou os primeiros jogos de tiro. Para John Carmack, Wolfenstein 3D e Doom são obras pessoais, que têm algo da personalidade dele, do que era programar jogos de PC no início dos anos 1990. Quando ele tentou a mão num jogo declaradamente autoral, deu num fracasso espetacular chamado Daikatana. E Daikatana pode ser o pior jogo, mesmo, mas é dele, o que não deixa de ser admirável.
E há autores em vários escopos: grandes diretores, de obras faraônicas (Peter Molineux, com Fable, e Richard Garriott, da série Ultima) e independentes (Jason Rohrer, de Passage e Sleep Is Death), passando por todo o espectro.
Os gêneros vão se fundindo (o melhor é action-adventure), desaparecem uns tempos, voltam, surgem focos de resistência ortodoxa. Há nichos (magia negra no Vietnã) e mais nichos (simulador social soft- porn japonês). Passage dura exatos cinco minutos. Minha partida de Persona 3 durou 71 horas.
Os jogos eletrônicos são razoavelmente jovens (perto, digamos, da música). Mas o que falta em estatuto é compensado pelas possibilidades que esse terreno novo oferece. Daqui a uns anos, ninguém vai lembrar se era arte ou não.

chorume.org
@andreconti


LULI RADFAHRER
Leia a coluna desta semana em www.folha.com/luliradfahrer




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