São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 2011

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LULI RADFAHRER

Estranha forma de vida


O paralelo entremáquinas e biologia é uma simplificação perigosa de raciocínio

O uso de metáforas biológicas para descrever o curioso ambiente em que vivem as máquinas --gerações, ciclos de vida, memória, inteligência etc.-- é tão comum que o absurdo da comparação passa, muitas vezes, despercebido. Por mais "inteligentes" que sejam determinadas redes de circuitos e mecanismos, sua natureza é muito diferente da biológica. Uma célula não só é mais complexa do que um chip: suas estruturas são tão diferentes que não podem ser comparadas.
O paralelo entre máquinas e biologia pode ser muito prático e confortável para transmitir novas ideias e entender processos desconhecidos. Mas essa simplificação, quando usada em excesso, provoca uma restrição perigosa de raciocínio.
Analisadas como formas de vida, tecnologias não fazem sentido. Elas nascem grandes demais, demandam uma quantidade desproporcional de energia, são surpreendentemente frágeis, proibitivas de tão caras e consideradas excentricidades quando vistas nas mãos de seus pouquíssimos usuários. Quase ninguém consegue levar seu potencial a sério.
À medida que se fortalecem, as máquinas e os mecanismos ficam menores, mais econômicos, robustos, baratos e fundamentais. É nesse momento que chamam a atenção de todos e, por um breve instante, se transformam em sinais de um futuro próximo.
Quando finalmente chegam à maturidade, desaparecem. Ninguém mais fala delas, por mais que sejam bastante eficientes, quase indestrutíveis, integradas ao custo de vida e ao cotidiano de tal forma que ninguém de bom senso pensaria em viver sem elas.
Energia elétrica, refrigeração, computadores, telefones, internet... São muitas as formas bizarras de "vida" criadas e nutridas a ponto de se tornarem independentes e essenciais para a sobrevivência no mundo contemporâneo.
Elas são tantas que é natural (e produtivo) ignorar a sua existência. Quem de bom senso pondera sobre as maravilhas do saneamento básico ou da coleta de lixo a não ser nos raros momentos em que deixam de funcionar? Não faz sentido imaginar como seria um prédio de escritórios se elevadores, papel e automóveis nunca tivessem sido inventados. Como essas tecnologias existem e funcionam razoavelmente bem, é fácil imaginar que o mundo sempre foi assim --e que nunca mudará.
A natureza peculiar das novas tecnologias faz com que pouquíssimos as levem a sério quando são lançadas no mercado. Mesmo depois que sua utilidade se mostrou inegável, não falta quem se recuse a aceitá-las até chegar o momento em que se torna impossível ignorá-las.
No entanto, novas técnicas surgem o tempo todo. Por mais que algumas sejam arriscadas, instáveis ou gerem o prejuízo de muitos ao favorecerem poucos, a grande maioria só se mantém quando promove benefícios generalizados.
Queiramos ou não, a relação que temos com as máquinas já deixou há muito tempo de se restringir ao uso funcional de ferramentas.
Hoje ela está mais para uma associação ou simbiose, em que duas espécies diferentes convivem em sociedade, integradas por estímulos recíprocos. Se essa relação é virtuosa ou perniciosa, se é simbiótica ou predatória, depende muito da forma como cada um a vivencia.

folha@luli.com.br


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