|
Texto Anterior | Índice
FERNANDO GABEIRA
Invasores alienígenas no horário eleitoral
Devo confessar , de início, algo muito grave: participo do programa eleitoral gratuito. São apenas três segundos,
mas integro, ainda que meteoricamente, o exército de alienígenas que invadiu os lares brasileiros, oriundo de remotos e bizarros
planetas.
Embora alguns indivíduos se
destaquem pela performance, como Cleusa Foguete, Ó Clemente e
Pé Liso, não é neles que se deve
concentrar nossa crítica. Está tudo errado. Navegamos nos escombros de uma forma de fazer
política, sem tempo para reinventá-la antes de outubro.
É todo um modelo que se desintegra, cheira mal e incomoda na
forma dos cartazes rasgados nos
postes, dos decibéis dos trios elétricos, das promessas e de falsos
sorrisos, comícios e carreatas.
Estamos todos mortos e não sabemos. Mesmo as campanhas milionárias, com imagens cuidadas,
não conseguem passar nada mais
do que uma felicidade artificial,
como se os candidatos fossem
aquelas bruxas de contos de fadas, que fingem nos proteger numa atmosfera de paz fabricada.
Em outras épocas, lançava-se
na política com a disposição de
ser amado ou odiado -ou ambos ao mesmo tempo. Não nos
preparamos para a indiferença.
Se o Exército cercasse o Congresso, viva o Congresso e sua resistência. Mas, agora, quem vai cercar o Congresso, quem vai defendê-lo, se uma parte da população
ignora as eleições e outra parte a
considera dispensável, como o caso da mídia, que resolveu silenciar sobre o tema?
Todos esses gigantescos divórcios começam de alguma maneira. O gesto inaugural foi dar as
costas para o sofrimento popular,
foi a incapacidade de sentir compaixão, de expressar solidariedade. A resposta está aí. Mas a crise
ainda não chegou ao ponto de
ruptura, faltam contornos aos
projetos alternativos.
O mais cruel é estabelecer uma
forma paracientífica para consolidar o desprezo mútuo entre os
políticos e o povo.
Tudo bem, queridas donas-de-casa, escrivães juramentados ou
técnicos de informática. O que vocês gostariam de ouvir, que qualidades gostariam de ver em seus
candidatos? Obrigado pela resposta e observem como, de agora
em diante, eles vão ser e falar tudo
o que querem ouvir.
Como somos o senso comum e
não há muita variação no que
pensamos, sobretudo porque lemos os mesmos jornais e vemos as
mesmas emissoras de TV, todos os
candidatos serão iguais. Com a
diferença do estilo.
Mesmo aí, queridos, estão convidados a moldar o boneco que
vai dirigi-los. Gravatas mais estreitas? Tudo bem. Mais firmeza
na voz ao se referir ao crime organizado? Boa idéia. Um lance esportivo, um beijo nas crianças, a
insistente declaração de fidelidade conjugal, ser fã da novela das
oito, o eleito se fabrica "just on time", à vontade do consumidor.
Passadas as eleições, vamos cuidar de outro produto. E o fosso
que cavamos não será apenas
ampliado, mas ganhará quilômetros de profundidade, graças ao
trabalho genial dos marqueteiros
que nos aproximam. Os líderes se
afogam na inautenticidade; os
consumidores ficam perplexos
porque o fruto de sua escolha
apodreceu sem prazo de garantia.
Não critico Cleusa Foguete, Pé
Liso ou Ó Clemente. Se um dia
aparecerem na sua frente, você
verá que são apenas gente do povo e supõem que é assim a democracia; basta aparecer e gravar
uma saudação mencionando genericamente os moradores de alguns bairros e uma teia de simpatia vai se criar entre eles.
Não são os perdedores que nos
jogaram nesse buraco. Essas eleições significam um ponto de mutação. A repetição do modelo será
apenas um exercício de sadomasoquismo contra o qual nada tenho nas relações individuais.
No plano social, entretanto, as
consequências desse imenso cadáver insepulto da política podem desafiar nossa imaginação.
Quando tiver tempo, vou me
lembrar de todos os programas
eleitorais gratuitos dos quais participei e também de todas as campanhas. Sempre os fiz com Piero e
Paula, dois italianos da geração
de 68 que aportaram por aqui.
Ela ficava com um cronômetro e
acreditávamos, sinceramente,
que tínhamos algo importante a
dizer em dez segundos.
Naquela época havia dom Eugênio Salles, com sua lista de candidatos proibidos aos católicos.
Era um convite à ironia.
Hoje nem ele parece se interessar. Os políticos estão sozinhos,
nome e número, à espera de alguém que escreva o epitáfio. Nada de muito dramático. Apenas
registrar que uma época acabou e
outra, cujos contornos ainda não
conseguimos definir, está nascendo na desconfiança popular em
todo esse discurso de felicidade
ampla, geral e irrestrita.
Texto Anterior: Fábula: Pinóquio ganhará novo parque na Itália Índice
|