São Paulo, segunda-feira, 02 de setembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Invasores alienígenas no horário eleitoral

Devo confessar , de início, algo muito grave: participo do programa eleitoral gratuito. São apenas três segundos, mas integro, ainda que meteoricamente, o exército de alienígenas que invadiu os lares brasileiros, oriundo de remotos e bizarros planetas.
Embora alguns indivíduos se destaquem pela performance, como Cleusa Foguete, Ó Clemente e Pé Liso, não é neles que se deve concentrar nossa crítica. Está tudo errado. Navegamos nos escombros de uma forma de fazer política, sem tempo para reinventá-la antes de outubro.
É todo um modelo que se desintegra, cheira mal e incomoda na forma dos cartazes rasgados nos postes, dos decibéis dos trios elétricos, das promessas e de falsos sorrisos, comícios e carreatas.
Estamos todos mortos e não sabemos. Mesmo as campanhas milionárias, com imagens cuidadas, não conseguem passar nada mais do que uma felicidade artificial, como se os candidatos fossem aquelas bruxas de contos de fadas, que fingem nos proteger numa atmosfera de paz fabricada.
Em outras épocas, lançava-se na política com a disposição de ser amado ou odiado -ou ambos ao mesmo tempo. Não nos preparamos para a indiferença. Se o Exército cercasse o Congresso, viva o Congresso e sua resistência. Mas, agora, quem vai cercar o Congresso, quem vai defendê-lo, se uma parte da população ignora as eleições e outra parte a considera dispensável, como o caso da mídia, que resolveu silenciar sobre o tema?
Todos esses gigantescos divórcios começam de alguma maneira. O gesto inaugural foi dar as costas para o sofrimento popular, foi a incapacidade de sentir compaixão, de expressar solidariedade. A resposta está aí. Mas a crise ainda não chegou ao ponto de ruptura, faltam contornos aos projetos alternativos.
O mais cruel é estabelecer uma forma paracientífica para consolidar o desprezo mútuo entre os políticos e o povo.
Tudo bem, queridas donas-de-casa, escrivães juramentados ou técnicos de informática. O que vocês gostariam de ouvir, que qualidades gostariam de ver em seus candidatos? Obrigado pela resposta e observem como, de agora em diante, eles vão ser e falar tudo o que querem ouvir.
Como somos o senso comum e não há muita variação no que pensamos, sobretudo porque lemos os mesmos jornais e vemos as mesmas emissoras de TV, todos os candidatos serão iguais. Com a diferença do estilo.
Mesmo aí, queridos, estão convidados a moldar o boneco que vai dirigi-los. Gravatas mais estreitas? Tudo bem. Mais firmeza na voz ao se referir ao crime organizado? Boa idéia. Um lance esportivo, um beijo nas crianças, a insistente declaração de fidelidade conjugal, ser fã da novela das oito, o eleito se fabrica "just on time", à vontade do consumidor.
Passadas as eleições, vamos cuidar de outro produto. E o fosso que cavamos não será apenas ampliado, mas ganhará quilômetros de profundidade, graças ao trabalho genial dos marqueteiros que nos aproximam. Os líderes se afogam na inautenticidade; os consumidores ficam perplexos porque o fruto de sua escolha apodreceu sem prazo de garantia.
Não critico Cleusa Foguete, Pé Liso ou Ó Clemente. Se um dia aparecerem na sua frente, você verá que são apenas gente do povo e supõem que é assim a democracia; basta aparecer e gravar uma saudação mencionando genericamente os moradores de alguns bairros e uma teia de simpatia vai se criar entre eles.
Não são os perdedores que nos jogaram nesse buraco. Essas eleições significam um ponto de mutação. A repetição do modelo será apenas um exercício de sadomasoquismo contra o qual nada tenho nas relações individuais.
No plano social, entretanto, as consequências desse imenso cadáver insepulto da política podem desafiar nossa imaginação.
Quando tiver tempo, vou me lembrar de todos os programas eleitorais gratuitos dos quais participei e também de todas as campanhas. Sempre os fiz com Piero e Paula, dois italianos da geração de 68 que aportaram por aqui. Ela ficava com um cronômetro e acreditávamos, sinceramente, que tínhamos algo importante a dizer em dez segundos.
Naquela época havia dom Eugênio Salles, com sua lista de candidatos proibidos aos católicos. Era um convite à ironia.
Hoje nem ele parece se interessar. Os políticos estão sozinhos, nome e número, à espera de alguém que escreva o epitáfio. Nada de muito dramático. Apenas registrar que uma época acabou e outra, cujos contornos ainda não conseguimos definir, está nascendo na desconfiança popular em todo esse discurso de felicidade ampla, geral e irrestrita.


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