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TERRA GELADA
Deus nativo teria inspirado obra de Shakespeare por meio de relato do aventureiro veneziano Antonio Pigafetta
Gigantes da Patagônia seduziram viajantes
DO ENVIADO ESPECIAL À PATAGÔNIA
Antes de a fotografia, o rádio, o
cinema e a TV aparecerem, os mitos surgiam de outra forma. Uma
delas era através das viagens a países longínquos. Os viajantes faziam largo uso de seus relatos,
tanto para entreter ou informar
quanto para maravilhar ou enganar. E, quando ludibriavam, nem
sempre estavam de má-fé, pois
muitos tinham "mente curiosa,
mas olhos falaciosos".
Em 1766, de volta da circunavegação do mundo, a tripulação do
Dolphin, sob o comando de John
Byron, tio do famoso poeta inglês,
declarava a existência de gigantes
na Patagônia. Apesar dos golpinhos de tosse e sorrisos contidos
de alguns céticos, em poucos meses a Europa e a América passaram a acreditar nos gigantes.
A notícia era excitante e maravilhosa o bastante para ganhar credibilidade. Além disso, era capaz
de entrelaçar jornalismo, filosofia,
ciência e religião. Gigantes aparecem na Bíblia e em muitas culturas ao redor do mundo, inclusive
no Brasil, mas os da Patagônia foram vistos e conhecidos por homens igualmente lendários como
Magalhães, Drake, Sarmiento e
Schouten e Le Maire.
Segundo Antonio Pigafetta, que
viajava com Magalhães, os navios
encontraram, na margem direita
do estreito, ao norte, um grupo de
homens "tão altos que lhe chegávamos à cintura, sendo no demais
muito proporcionados".
"Um gigante que subiu a bordo", continua Pigafetta em seu relato, "tinha os pés cobertos com
pele de animal" e, quando se viu
refletido num espelho, ficou assustado e "voou para trás com tal
violência que derrubou três ou
quatro dos nossos, que estavam
ao seu lado".
Pigafetta menciona também o
nome do deus nativo, Setebos,
que mais tarde seria utilizado por
Shakespeare em "A Tempestade".
Não há muitas oportunidades para conferir a credibilidade do relato, mas, se em alguns trechos Pigafetta descreve escrupulosamente plantas e frutas que foi encontrando, em outros conta a aparição de pássaros pouco prováveis e
até mesmo de santos na Argentina. Mente curiosa, mas olhos, por
vezes, falaciosos.
Francis Fletcher, chapelão de
bordo do navio de Francis Drake,
escreve que os nativos não são tão
grandes como pensava, mas Pedro Sarmiento de Gamboa, que
entrou no estreito para capturar
Drake (sem conseguir) volta a
chamá-los de gigantes. Palavra
usada também por Schouten e Le
Maire, os holandeses que descobriram o cabo Horn. Eles dizem
ter encontrado túmulos com esqueletos de homens que mediam
cerca de 2,5 m. E já na primeira
edição do relato, de 1619, aparece
uma gravura mostrando a cena.
Depois dos holandeses, não se
publicaram mais testemunhos diretos, mas o mito consolidou-se
graças a livros e gravuras que por
mais de cem anos prepararam o
campo para a retomada.
As declarações da tripulação do
Dolphin deflagraram em jornais e
periódicos ingleses e reverberaram na França, criando discussões, acusações, retratações e sarcasmos que mantiveram viva a
atenção do público por sete anos.
Durante esse período foram publicados livros sobre o tema e republicados todos aqueles que
mencionavam a Patagônia.
No diário anônimo de um oficial a bordo do Dolphins, a capa
apresenta uma gravura com marinheiros encontrando uma família de colossos austrais. A polêmica chegou a roçar Voltaire, que,
contra-atacando um adversário,
em 1773, escreveu com ironia:
"Você queria, talvez, me seccionar; mas considere que eu não
sou um patagônio, e meu cérebro
é tão pequeno que a descoberta de
suas fibras não fornecerá nenhuma novidade sobre a alma".
No mesmo ano, a publicação do
relato oficial da expedição, assinado pelo capitão Byron e três oficiais, pôs fim à controvérsia reconhecendo que se tratava de homens com estatura acima da média. Mente curiosa com olhos
competentes. Com isso, o interesse do público rapidamente declinou.
(VINCENZO SCARPELLINI)
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