São Paulo, segunda-feira, 03 de dezembro de 2001

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FERNANDO GABEIRA

Clonagem humana e fertilização pela caneta Bic

Dois episódios numa mesma área disputaram minha atenção ao longo da semana: a clonagem de um embrião humano, pela empresa ACT (Advanced Cell Technology), e a versão da Polícia Federal de que a cantora mexicana Gloria Trevi teria sido fecundada no cárcere com a ajuda de uma caneta Bic.
Dois episódios distintos no espaço, mas ligados pelas antenas da mundialização. Construir uma identidade hoje significa também se separar, fixar seus limites e diferenças em relação ao mundo.
Impossível, na intimidade que o fluxo de notícias revela às sociedades planetárias, deixar de comparar os dois feitos genéticos: um produzido pela ciência de ponta, outro pela nossa inesgotável capacidade de produzir versões para fatos de grande seriedade, como o estupro de uma celebridade estrangeira nas dependências de nossa Polícia Federal.
Os defensores da clonagem sempre afirmam que nada pode deter o avanço da ciência. Outros chegam a dizer que o século 20 foi marcado pelas experiências sociais e que agora entramos numa etapa que vai revolucionar as possibilidades do corpo humano.
Uma das seduções acenadas pela ciência é a possibilidade de ter corpo de 20 anos e idade de 70.
Na verdade, o que os defensores da clonagem do embrião dizem é que seu objetivo é basicamente a medicina regenerativa, potencializada pela produção das células-tronco. Imaginem, dizem eles, quantas vidas podem ser salvas, quantas deficiências físicas, superadas.
Não há como contestá-los, se ficassem nisso. Tudo de que poderiam ser acusados é a morte de um embrião de menos de 14 dias.
Esse prazo foi fixado pela lei inglesa. Quando tomaram essa decisão, lembro-me que escrevi um artigo defendendo que há, sim, um limite para a ciência e que esse limite era a clonagem humana.
Não era só a lei inglesa que se movia. Também havia uma tendência americana de suspender a proibição do uso de verbas públicas nesse tipo de pesquisa.
Quando se diz que nada pode deter a ciência, no fundo, reivindica-se para ela um papel soberano e totalizante.
No caso da clonagem humana, outras posições, como as da psicologia, da antropologia, da religião e da política, têm todo o direito de se articular para buscar um controle social de um processo que na verdade transcende a pesquisa científica.
A imprensa brasileira, por sua vez, bem que tentou examinar todas as hipóteses de nosso acontecimento genético nas celas da Polícia Federal. O esperma misturado com leite na caneta Bic teria sido o instrumento da fecundação da cantora mexicana.
Ainda no meio da semana, no café do Congresso, um deputado tentava explicar cientificamente como tudo era possível. Faltava apenas um elo na sua cadeia causal: quem soprou o esperma da caneta, uma vez que a fecundação só seria possível se alguém ajudasse com um sopro, algo que era fisicamente impossível para a mulher a ser fecundada.
De sopro em sopro, da imaginação criadora da Polícia Federal a uma explicação científica, tudo se articula maravilhosamente para cultuar nossa auto-estima. O Brasil é tão atraente para Gloria Trevi, ou o México, tão assustador, que ela produziu uma gravidez com um instrumento até então usado para desenhar números ou letras.
Os brasileiros, que jamais hesitam em soprar o olho de alguém para tirar um cisco, devem ter se oferecido facilmente para soprar o conteúdo da Bic, transformada num artefato de fecundação.
Não se pode comparar a sofisticação científica da clonagem com a fecundação artesanal de Gloria Trevi. Uma experiência científica, por definição, é aquela que pode ser reproduzida nas condições determinadas, passível, portanto, de verificação.
Como a fecundação de Gloria Trevi se deu nas dependências do governo e seus divulgadores científicos pertencem aos quadros federais, o Brasil precisa avançar no aperfeiçoamento desse método para que possa partilhar com o mundo essa combinação de leite, esperma e caneta Bic.
Embora não tenha acontecido no campo específico da manipulação genética, não deixa de ser um passo adiante na ciência alternativa, ideal para países do Terceiro Mundo. É essa efervescência cultural do governo que me faz perdoar o presidente Cardoso por desprezar os professores que não puderam pesquisar e têm de se contentar em divulgar idéias alheias.
Mesmo na Polícia Federal, com tantas tarefas ligadas à segurança do país, o trabalho de pesquisa jamais cessou. Leiteiros, masturbadores e produtores de caneta Bic são os heróis anônimos dessa imensa aventura intelectual do governo tucano. Homens e mulheres que, no princípio, pareciam ser apenas um grupo bem intencionado de professores universitários, mas que tinham, na verdade, paixão pela ciência.
A própria Gloria Trevi, presa por quase dois anos numa situação legalmente "sospechosa", saberá compreender o sacrifício que lhe foi imposto, quando se der conta da co-produção mexicano-brasileira. É um marco da criatividade humana.
Num momento em que cientistas estrangeiros flertam com a morte através da clonagem, uma reprodução com uma simples caneta Bic nos faz assinar o atestado de nossa grandeza intelectual. Salve, salve.




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