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FERNANDO GABEIRA
Clonagem humana e fertilização pela caneta Bic
Dois episódios numa
mesma área disputaram
minha atenção ao longo da semana: a clonagem de um embrião
humano, pela empresa ACT (Advanced Cell Technology), e a versão da Polícia Federal de que a
cantora mexicana Gloria Trevi
teria sido fecundada no cárcere
com a ajuda de uma caneta Bic.
Dois episódios distintos no espaço, mas ligados pelas antenas
da mundialização. Construir
uma identidade hoje significa
também se separar, fixar seus limites e diferenças em relação ao
mundo.
Impossível, na intimidade que o
fluxo de notícias revela às sociedades planetárias, deixar de comparar os dois feitos genéticos: um
produzido pela ciência de ponta,
outro pela nossa inesgotável capacidade de produzir versões para fatos de grande seriedade, como o estupro de uma celebridade
estrangeira nas dependências de
nossa Polícia Federal.
Os defensores da clonagem sempre afirmam que nada pode deter
o avanço da ciência. Outros chegam a dizer que o século 20 foi
marcado pelas experiências sociais e que agora entramos numa
etapa que vai revolucionar as
possibilidades do corpo humano.
Uma das seduções acenadas pela ciência é a possibilidade de ter
corpo de 20 anos e idade de 70.
Na verdade, o que os defensores
da clonagem do embrião dizem é
que seu objetivo é basicamente a
medicina regenerativa, potencializada pela produção das células-tronco. Imaginem, dizem eles,
quantas vidas podem ser salvas,
quantas deficiências físicas, superadas.
Não há como contestá-los, se ficassem nisso. Tudo de que poderiam ser acusados é a morte de
um embrião de menos de 14 dias.
Esse prazo foi fixado pela lei inglesa. Quando tomaram essa decisão, lembro-me que escrevi um
artigo defendendo que há, sim,
um limite para a ciência e que esse limite era a clonagem humana.
Não era só a lei inglesa que se
movia. Também havia uma tendência americana de suspender a
proibição do uso de verbas públicas nesse tipo de pesquisa.
Quando se diz que nada pode
deter a ciência, no fundo, reivindica-se para ela um papel soberano e totalizante.
No caso da clonagem humana,
outras posições, como as da psicologia, da antropologia, da religião
e da política, têm todo o direito de
se articular para buscar um controle social de um processo que na
verdade transcende a pesquisa
científica.
A imprensa brasileira, por sua
vez, bem que tentou examinar todas as hipóteses de nosso acontecimento genético nas celas da Polícia Federal. O esperma misturado com leite na caneta Bic teria sido o instrumento da fecundação
da cantora mexicana.
Ainda no meio da semana, no
café do Congresso, um deputado
tentava explicar cientificamente
como tudo era possível. Faltava
apenas um elo na sua cadeia causal: quem soprou o esperma da
caneta, uma vez que a fecundação só seria possível se alguém
ajudasse com um sopro, algo que
era fisicamente impossível para a
mulher a ser fecundada.
De sopro em sopro, da imaginação criadora da Polícia Federal a
uma explicação científica, tudo se
articula maravilhosamente para
cultuar nossa auto-estima. O Brasil é tão atraente para Gloria Trevi, ou o México, tão assustador,
que ela produziu uma gravidez
com um instrumento até então
usado para desenhar números ou
letras.
Os brasileiros, que jamais hesitam em soprar o olho de alguém
para tirar um cisco, devem ter se
oferecido facilmente para soprar
o conteúdo da Bic, transformada
num artefato de fecundação.
Não se pode comparar a sofisticação científica da clonagem com
a fecundação artesanal de Gloria
Trevi. Uma experiência científica,
por definição, é aquela que pode
ser reproduzida nas condições determinadas, passível, portanto, de
verificação.
Como a fecundação de Gloria
Trevi se deu nas dependências do
governo e seus divulgadores científicos pertencem aos quadros federais, o Brasil precisa avançar
no aperfeiçoamento desse método
para que possa partilhar com o
mundo essa combinação de leite,
esperma e caneta Bic.
Embora não tenha acontecido
no campo específico da manipulação genética, não deixa de ser
um passo adiante na ciência alternativa, ideal para países do
Terceiro Mundo. É essa efervescência cultural do governo que
me faz perdoar o presidente Cardoso por desprezar os professores
que não puderam pesquisar e têm
de se contentar em divulgar
idéias alheias.
Mesmo na Polícia Federal, com
tantas tarefas ligadas à segurança
do país, o trabalho de pesquisa jamais cessou. Leiteiros, masturbadores e produtores de caneta Bic
são os heróis anônimos dessa
imensa aventura intelectual do
governo tucano. Homens e mulheres que, no princípio, pareciam
ser apenas um grupo bem intencionado de professores universitários, mas que tinham, na verdade,
paixão pela ciência.
A própria Gloria Trevi, presa
por quase dois anos numa situação legalmente "sospechosa", saberá compreender o sacrifício que
lhe foi imposto, quando se der
conta da co-produção mexicano-brasileira. É um marco da criatividade humana.
Num momento em que cientistas estrangeiros flertam com a
morte através da clonagem, uma
reprodução com uma simples caneta Bic nos faz assinar o atestado de nossa grandeza intelectual.
Salve, salve.
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