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Museu descreve o holocausto negro nas Américas
LUCIANO GRÜDTNER BURATTO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Curaçao guarda um tesouro no
meio do Caribe: o museu Kurá
Hulanda. Construído no local onde funcionava um posto de descarga de escravos, ele relata o holocausto negro das Américas. Dividido em módulos, apresenta de
forma didática o tráfico negreiro e
o modo de vida nos antigos reinos
da África Ocidental.
No século 17, os holandeses deslancharam no negócio de compra, transporte e venda de escravos. A rota do tráfico incluía África, Brasil, Suriname, Curaçao,
Cuba e Estados Unidos. Na África, compravam escravos dos reis
de Dahomey (atual Benin) e Congo ou os capturavam.
A viagem pelo oceano Atlântico
era sofrida. Cada investida trazia
cerca de 300 escravos, agrilhoados
e comprimidos em aposentos minúsculos. O museu tem uma réplica em tamanho real de uma
dessas embarcações.
Jovens e mulheres grávidas tinham preferência. Os primeiros
ocupavam pouco espaço; mais
deles poderiam ser amontoados
no mesmo espaço. Quanto às grávidas, valiam por dois.
Alguns bancos, em funcionamento até hoje, enriqueceram ao
vender serviços de seguro. Eles asseguravam os carregamentos
contra fugas, ataques de piratas e
motins. Morte natural não era coberta. Dessa forma, idosos e
doentes eram jogados ao mar e
depois reclamados como fugitivos para a obtenção do seguro.
Cerca de um terço da carga era
vendida no Brasil e no Suriname,
onde os holandeses possuíam colônias. A seguir, desembarcavam
em Curaçao, onde os cativos restantes eram treinados para trabalhar na lavoura. Depois eram vendidos, com maior valor, para latifundiários em Cuba e nos EUA.
Após a colheita, muitos preferiam
livrar-se dos escravos a mantê-los
até o ano seguinte.
Para agregar mais valor, muitos
escravos eram treinados como
marceneiros por dois ou três anos
antes de serem vendidos por altos
preços nos EUA, principalmente
na Virgínia e na Nova Amsterdã
(atual Nova York).
Os índios nativos de Curaçao
não foram comumente usados
como escravos. Muitos morreram
devido a doenças ou se suicidaram. O resultado do genocídio se
vê nas ruas, onde poucos transeuntes trazem feições indígenas.
O século de ouro holandês, que
incluiu grandes nomes da arte,
como Rembrandt e Vermeer, foi,
em grande parte, financiado pelos
lucros auferidos pela Companhias das Índias Ocidentais, a empresa de grande porte holandesa
que levava a cabo o tráfico.
Aos que se chocam com a venda
de seres humanos, vale lembrar
que naquela época não era universalmente aceita a idéia de que
negros tinham alma ou eram humanos. Algo como o fato de os direitos civis de homossexuais não
serem universalmente aceitos hoje. No futuro, ao olhar para trás,
talvez isso soe tão chocante quanto a própria escravidão.
Ainda hoje, o trabalho escravo
continua disseminado. Segundo a
Unesco, cerca de 450 mil pessoas
em todo o mundo vivem em condições análogas à escravidão, incluindo sudaneses e brasileiros.
A exposição no museu Kurá
Hulanda ajuda a lançar um olhar
crítico e esclarecedor sobre o passado e sua relação com o presente.
Em exposição, encontra-se uma
roupa manchada de sangue de
membros da Ku Klux Klan, organização norte-americana que prega a supremacia racial branca. O
objeto foi adquirido em leilão.
Na entrada do museu, a escultura de bronze "Mama África", do
artista local Nel Simon, resume a
origem do povo da ilha: de frente,
a obra mostra o rosto de uma mulher; de lado, vislumbra-se o continente africano.
Reinos da África ocidental
O módulo sobre os reinos da
África ocidental reúne desde objetos do dia-a-dia dos antigos habitantes até réplicas de construções de barro. O visitante pode
ver, por exemplo, moedas de
bronze gigantes, que mais parecem espadas, usadas nas relações
comerciais entre os povos africanos. "Se o produto era grande, como uma vaca, a moeda para comprá-lo também tinha que ser
grande", brinca Leo Helms, arquiteto e curador do museu.
Outra atração é uma réplica de
casa de barro da tribo Dogon, que
se estabeleceu na África ocidental
por volta de 1200. Ainda hoje é
possível encontrar esse tipo de
construção na região. A fachada
dessas casas, que na verdade são
celeiros, encerra a história familiar de seus donos.
A influência islâmica nos povos
africanos está representada por
móveis e mosaicos. Observando
as junções dos desenhos nos mosaicos, notam-se pequenas imperfeições. Segundo a tradição, só
Deus é perfeito; o homem é imperfeito e suas obras também. Assim, erros eram deliberadamente
introduzidos nas obras a fim de
demonstrar respeito a Deus.
A coleção traz também esculturas de bronze de Benin. É um privilégio ter acesso a essas obras já
que o governo africano agora
proíbe a venda de tesouros históricos a estrangeiros.
O museu Kurá Hulanda, aberto
diariamente das 10h às 17h, recebe
cerca de 4.000 visitantes por mês.
As entradas custam US$ 6 para
adultos e US$ 3 para crianças.
Semanalmente no local são encenadas peças de teatro que procuram relatar com fidelidade o
dia-a-dia dos escravos.
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