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DISNEY NA MIRA DA ESQUERDA
Autores chilenos acusam de imperialista e assexuado o mundo de Pato Donald e sua turma
Livro joga luz sobre o que não está no gibi
PEDRO CIRNE DE ALBUQUERQUE
free-lance para a Folha
Toda rosa tem espinhos. No caso
dos gibis que imortalizaram o
quadrinhista norte-americano
Walt Disney (1901-66), há quem
diga que os ferimentos provocados pelos espinhos das histórias na
imaginação das crianças são muito maiores que o bem que a beleza
e a essência podem propiciar.
O livro "Para Ler o Pato Donald
- Comunicação de Massa e Colonialismo", publicado em 1971, no
Chile (e em 1977 no Brasil, pela
Paz e Terra), é uma análise dos valores implícitos e, por vezes, explícitos que aparecem nas histórias
de Tio Patinhas, Mickey e cia.
Para os autores do livro, os chilenos Ariel Dorfman e Armand Mattelart, Patópolis e seus arredores
formam um microuniverso em
que se defendem e propagam os
valores e ideais capitalistas -é o
imperialismo norte-americano
que aparece nas sombras da caixa
forte do tio Patinhas, dos uniformes laranja dos irmãos Metralha,
dos "quacks" do Donald.
Quando o livro foi escrito, os
partidos de esquerda estavam em
progresso no Chile.
O candidato da situação, Radomiro Romeo, do Partido Democrata Cristão, havia sido derrotado
na eleição presidencial de 1970 pelo candidato da oposição, Salvador Allende Gossens.
Os intelectuais de esquerda no
Chile temiam qualquer forma de
invasão capitalista. Dorfman e
Mattelart, em particular, temiam
que essa invasão se desse, também, pelas histórias em quadrinhos. Em seu prefácio para a edição brasileira, o tradutor Álvaro
de Moya, especialista em quadrinhos, definiu a obra como "um
panfleto, uma obra sectária, política, parcial, radical, esquerdista,
antiimperialista e anticolonialista
em seu bom e mau sentido".
As revistas da família Disney, assim como os partidos de esquerda,
também estavam em alta -na
época, os "niños" chilenos liam
"Disneylândia", "Tio Rico" (com
o tio Patinhas), "Tribilin" (com o
Pateta) e "Fantasias".
Quando um terremoto assolou a
cidade de San Antonio, os meninos de San Bernardo mandaram
revistas "Disneylândia" para aliviar a dor de seus compatriotas.
A análise dos autores do livro
não se propôs imparcial. Eles partiram do ponto que a obra de Disney era, por definição, errada, e
que, por isso, deveriam combatê-lo. Já sabiam, também, que eles
próprios seriam atacados por suas
acusações e, na introdução do livro, já "profetizavam" como seriam descritos seus atos pelos críticos: "...querer lavar o cérebro das
crianças com a doutrina do cinzento realismo socialista..."
Dorfman e Mattelart constatam
que não há qualquer espécie de
produção no "Mundo Disney":
não são mostradas indústrias ou
trabalhos cotidianos de qualquer
espécie. E mesmo as relações sexuais inexistem.
Analisando o lado sexual, eles
afirmam que "os (personagens)
do setor masculino são obrigatoriamente, e perpetuamente, solteiros. Não, porém, solitários: também os acompanham sobrinhos,
que chegam e vão".
Com essa sutil frase, eles vão pelo mesmo caminho que o psicólogo Fredric Wertham seguiu quando acusou Batman de transar com
Robin -e quase acabou com a revista do herói na década de 60.
Quem é o pai?
O fato de nenhum personagem
de Disney ter pai ou mãe é considerado perigosamente ofensivo
por Dorfman e Mattelart.
Como nunca foi descoberto qual
irmão/irmã de Donald é pai/mãe
dos trigêmeos Huguinho, Zezinho
e Luisinho, e isso se passa em todas as relações tio/sobrinho de Patópolis, os autores concluem que
há uma construção de um "mundo aberrante" para os leitores infantis, desprovido de sexo.
A mulher, segundo apontam, estaria restrita a dois papéis específicos: a donzela dona de casa (Margarida, Minie, Vovó Donalda, Clarabela) ou a perigosa perversa
(Madame Min, Maga Patalógika).
"É preciso escolher entre dois tipos de panela: a caçarola do lar ou
a da poção mágica horrenda."
Ao tacharem as histórias de Patópolis como machistas, os autores podem estar se estendendo aos
"comics" (quadrinhos norte-americanos) em geral.
Na época em que foi escrito o livro, as mulheres só protagonizavam HQs do outro lado do Atlântico, na Europa. Lois Lane, eterna
namorada (hoje mulher) do Super-Homem, Betty Banner, do
Hulk, e outras personagens jamais
saíram da sombra de seus importantes amantes. A exceção fica por
conta da Mulher-Maravilha, iniciativa do psicólogo feminista
Charles Moulton.
De volta a Patópolis: "Tais personagens, por não estarem engendrados em um ato biológico, aspiram à imortalidade; por muito que
sofram, no transcurso de suas
aventuras foram liberados da maldição de seu corpo".
Essa metonímia se estende, novamente, a todos os personagens
das histórias em quadrinhos: jamais veremos um Cebolinha ou
uma Mônica crescidos, para pegarmos exemplos brasileiros, ou
um Batman e um Homem-Aranha
de cabelos brancos. É uma crítica
aos personagens de HQs de um
modo generalizado.
Mas, além dos fatores de comportamento e evolução física, incomoda a Dorfman e Matelart o
lado econômico das histórias, posto que jamais são vistos operários
(tio Patinhas só tem "funcionários", segundo eles) ou fábricas
nos cenários patopolenses.
Com a ausência das formas de
produção, Disney "expulsa o setor
secundário de seu mundo, de
acordo com os desejos utópicos da
classe dominante de seu país", de
onde concluem que ele "cria um
mundo que é uma paródia do
mundo do subdesenvolvimento".
Como o lado econômico, o valor
exagerado dado pelo patos ao dinheiro, mostrado explicitamente,
há também o lado político, este
implícito, que também seria prejudicial às crianças.
"Já não podem escapar a ninguém os propósitos políticos de
Disney, (...) em que está cobrindo
de animalidade, infantilismo,
bom-selvagismo, uma trama de
interesses de um sistema social
historicamente determinado e
concretamente situado: o imperialismo norte-americano."
Funcionaria assim: a classe proletária estaria "escondida" sob os
selvagens bonzinhos (pessoas de
origem humilde, geralmente do
interior) e criminosos patopolenses (fadados ao eterno fracasso).
Esses personagens resgatariam
do proletariado alguns mitos que a
burguesia tem construído desde
sua aparição, com o propósito de
"ocultar e domesticar seu inimigo,
fazendo-o funcionar fluidamente
dentro do sistema".
Submissão
Essa representação é associada
às relações autoritárias que os personagens têm entre si. Em muitas
histórias, Donald segue à risca as
ordens do tio Patinhas, bem como
é obedecido cegamente quando
esbraveja com seu sobrinhos.
Desses relacionamentos, eles
concluem que há uma linha de poder dividindo os personagens. "Os
que estão abaixo devem ser obedientes, submissos, disciplinados
e aceitar com respeito e humildade
as ordens superiores."
Assim, implicitamente, haveria
uma "mensagem" de como os povos subdesenvolvidos devam se
comportar frente aos mais desenvolvidos: seguindo suas ordens
sem questionar, aceitando cegamente sua liderança.
"Os povos subdesenvolvidos são
para Disney como as crianças; devem ser tratados como tais e, se
não aceitam essa definição de seu
ser, é preciso descer suas calças e
lhes dar uma boa surra."
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