São Paulo, segunda, 9 de fevereiro de 1998

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DISNEY NA MIRA DA ESQUERDA
Autores chilenos acusam de imperialista e assexuado o mundo de Pato Donald e sua turma
Livro joga luz sobre o que não está no gibi

PEDRO CIRNE DE ALBUQUERQUE
free-lance para a Folha

Toda rosa tem espinhos. No caso dos gibis que imortalizaram o quadrinhista norte-americano Walt Disney (1901-66), há quem diga que os ferimentos provocados pelos espinhos das histórias na imaginação das crianças são muito maiores que o bem que a beleza e a essência podem propiciar.
O livro "Para Ler o Pato Donald - Comunicação de Massa e Colonialismo", publicado em 1971, no Chile (e em 1977 no Brasil, pela Paz e Terra), é uma análise dos valores implícitos e, por vezes, explícitos que aparecem nas histórias de Tio Patinhas, Mickey e cia.
Para os autores do livro, os chilenos Ariel Dorfman e Armand Mattelart, Patópolis e seus arredores formam um microuniverso em que se defendem e propagam os valores e ideais capitalistas -é o imperialismo norte-americano que aparece nas sombras da caixa forte do tio Patinhas, dos uniformes laranja dos irmãos Metralha, dos "quacks" do Donald.
Quando o livro foi escrito, os partidos de esquerda estavam em progresso no Chile.
O candidato da situação, Radomiro Romeo, do Partido Democrata Cristão, havia sido derrotado na eleição presidencial de 1970 pelo candidato da oposição, Salvador Allende Gossens.
Os intelectuais de esquerda no Chile temiam qualquer forma de invasão capitalista. Dorfman e Mattelart, em particular, temiam que essa invasão se desse, também, pelas histórias em quadrinhos. Em seu prefácio para a edição brasileira, o tradutor Álvaro de Moya, especialista em quadrinhos, definiu a obra como "um panfleto, uma obra sectária, política, parcial, radical, esquerdista, antiimperialista e anticolonialista em seu bom e mau sentido".
As revistas da família Disney, assim como os partidos de esquerda, também estavam em alta -na época, os "niños" chilenos liam "Disneylândia", "Tio Rico" (com o tio Patinhas), "Tribilin" (com o Pateta) e "Fantasias".
Quando um terremoto assolou a cidade de San Antonio, os meninos de San Bernardo mandaram revistas "Disneylândia" para aliviar a dor de seus compatriotas.
A análise dos autores do livro não se propôs imparcial. Eles partiram do ponto que a obra de Disney era, por definição, errada, e que, por isso, deveriam combatê-lo. Já sabiam, também, que eles próprios seriam atacados por suas acusações e, na introdução do livro, já "profetizavam" como seriam descritos seus atos pelos críticos: "...querer lavar o cérebro das crianças com a doutrina do cinzento realismo socialista..."
Dorfman e Mattelart constatam que não há qualquer espécie de produção no "Mundo Disney": não são mostradas indústrias ou trabalhos cotidianos de qualquer espécie. E mesmo as relações sexuais inexistem.
Analisando o lado sexual, eles afirmam que "os (personagens) do setor masculino são obrigatoriamente, e perpetuamente, solteiros. Não, porém, solitários: também os acompanham sobrinhos, que chegam e vão".
Com essa sutil frase, eles vão pelo mesmo caminho que o psicólogo Fredric Wertham seguiu quando acusou Batman de transar com Robin -e quase acabou com a revista do herói na década de 60.

Quem é o pai?
O fato de nenhum personagem de Disney ter pai ou mãe é considerado perigosamente ofensivo por Dorfman e Mattelart.
Como nunca foi descoberto qual irmão/irmã de Donald é pai/mãe dos trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luisinho, e isso se passa em todas as relações tio/sobrinho de Patópolis, os autores concluem que há uma construção de um "mundo aberrante" para os leitores infantis, desprovido de sexo.
A mulher, segundo apontam, estaria restrita a dois papéis específicos: a donzela dona de casa (Margarida, Minie, Vovó Donalda, Clarabela) ou a perigosa perversa (Madame Min, Maga Patalógika). "É preciso escolher entre dois tipos de panela: a caçarola do lar ou a da poção mágica horrenda."
Ao tacharem as histórias de Patópolis como machistas, os autores podem estar se estendendo aos "comics" (quadrinhos norte-americanos) em geral.
Na época em que foi escrito o livro, as mulheres só protagonizavam HQs do outro lado do Atlântico, na Europa. Lois Lane, eterna namorada (hoje mulher) do Super-Homem, Betty Banner, do Hulk, e outras personagens jamais saíram da sombra de seus importantes amantes. A exceção fica por conta da Mulher-Maravilha, iniciativa do psicólogo feminista Charles Moulton.
De volta a Patópolis: "Tais personagens, por não estarem engendrados em um ato biológico, aspiram à imortalidade; por muito que sofram, no transcurso de suas aventuras foram liberados da maldição de seu corpo".
Essa metonímia se estende, novamente, a todos os personagens das histórias em quadrinhos: jamais veremos um Cebolinha ou uma Mônica crescidos, para pegarmos exemplos brasileiros, ou um Batman e um Homem-Aranha de cabelos brancos. É uma crítica aos personagens de HQs de um modo generalizado.
Mas, além dos fatores de comportamento e evolução física, incomoda a Dorfman e Matelart o lado econômico das histórias, posto que jamais são vistos operários (tio Patinhas só tem "funcionários", segundo eles) ou fábricas nos cenários patopolenses.
Com a ausência das formas de produção, Disney "expulsa o setor secundário de seu mundo, de acordo com os desejos utópicos da classe dominante de seu país", de onde concluem que ele "cria um mundo que é uma paródia do mundo do subdesenvolvimento".
Como o lado econômico, o valor exagerado dado pelo patos ao dinheiro, mostrado explicitamente, há também o lado político, este implícito, que também seria prejudicial às crianças.
"Já não podem escapar a ninguém os propósitos políticos de Disney, (...) em que está cobrindo de animalidade, infantilismo, bom-selvagismo, uma trama de interesses de um sistema social historicamente determinado e concretamente situado: o imperialismo norte-americano."
Funcionaria assim: a classe proletária estaria "escondida" sob os selvagens bonzinhos (pessoas de origem humilde, geralmente do interior) e criminosos patopolenses (fadados ao eterno fracasso).
Esses personagens resgatariam do proletariado alguns mitos que a burguesia tem construído desde sua aparição, com o propósito de "ocultar e domesticar seu inimigo, fazendo-o funcionar fluidamente dentro do sistema".
Submissão
Essa representação é associada às relações autoritárias que os personagens têm entre si. Em muitas histórias, Donald segue à risca as ordens do tio Patinhas, bem como é obedecido cegamente quando esbraveja com seu sobrinhos.
Desses relacionamentos, eles concluem que há uma linha de poder dividindo os personagens. "Os que estão abaixo devem ser obedientes, submissos, disciplinados e aceitar com respeito e humildade as ordens superiores."
Assim, implicitamente, haveria uma "mensagem" de como os povos subdesenvolvidos devam se comportar frente aos mais desenvolvidos: seguindo suas ordens sem questionar, aceitando cegamente sua liderança.
"Os povos subdesenvolvidos são para Disney como as crianças; devem ser tratados como tais e, se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra."



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