São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2001

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FERNANDO GABEIRA

A influência do ar-condicionado no dia-a-dia

Sonny Rollins é um músico de jazz de alto nível, contemporâneo de Charles Mingus, John Coltrane, Miles Davis e considerado um legítimo ocupante desse olimpo do jazz.
Ele acaba de lançar seu novo trabalho, "The Bridge", e, numa entrevista sobre sua maneira de compor e ensaiar, confessou que a única forma de exercitar seu talento em Nova York é tocar no passeio. De um modo geral, os vizinhos são implacáveis mesmo com gênios como Rollins. E talvez por isso as calçadas de Nova York estejam sempre cheias de bons músicos. A julgar pelos documentários de TV.
Escritores, hoje em dia, não têm mais esse problema, porque trabalham com silenciosos computadores. Bucowsky, em seus relatos biográficos, sempre fala do pavor dos vizinhos com o batucar da sua velha máquina de escrever. Sonny Rollins contou que já ensaiou muito num andar imediatamente superior ao de uma vizinha grávida. Esse drama não atinge os escritores, mas não quer dizer que eles estejam livres de outros. Um deles, no Rio, é o calor. É quase impossível manter a produtividade a 38C.
Mesmo quem não gosta de ar-condicionado um dia tem de capitular, como foi o meu caso.
Tenho um amigo cujo instrumento de trabalho também é o computador e sua capitulação diante do ar-condicionado está sendo lenta e gradual.
Por exemplo, ele não tem coragem de dormir com o aparelho ligado. Sem ar-condicionado, acorda muitas vezes à noite. Quando acorda, liga o ar um pouquinho, até o momento em que sente sono de novo.
Desliga e volta ao sono interrompido pelo suor. Outras vezes durante a noite repete o mesmo gesto, até que amanhece, e é hora de sair para o ar livre.
Como esse amigo é solteiro, conclui que acabou se casando com uma tirânica máquina que regula seu sono como uma parceira insaciável.
Minhas primeiras noites com ar-condicionado, neste verão, foram estranhas. Ao longo da madrugada, o quarto ia esfriando e, quando eu saía dele, ao amanhecer, recebia ao entrar na sala uma lufada quente que alegrava meu princípio de manhã.
Era como se estivesse saindo do frio e abrisse a porta do avião em dezembro, no Rio. A lufada de ar quente me transmitia uma vida em ebulição, algo como um elixir mágico para curar o frio que o corpo e o espírito acumularam no inverno europeu.
Trabalho num ar-condicionado meio problemático no Congresso. Uma empresa inglesa andou pesquisando por ali e concluiu que ele joga a sujeira de volta ao ambiente fechado.
O próprio ministro da Saúde, José Serra, chegou a se interessar pelo tema ar-condicionado depois da morte de Sérgio Motta.
Um dia talvez a gente tenha de colocar esse problema para a arquitetura brasileira, uma tentativa cada vez mais aguçada de como não só escapar do calor dos prédios, mas também dessas ilhas de calor que estão se formando nas grandes cidades e que estão se tornando tema de estudos universitários aqui no Rio.
Lembro-me que a chegada do ar-condicionado ao Brasil era anunciada com orgulho nas laterais dos ônibus, nas portas dos restaurantes.
Ar-condicionado. A palavra inspirava um oásis no mundo calorento da grande cidade. O ar-condicionado ficou tão associado a uma qualidade especial que os motoristas de táxi advertem em pequenos cartazes: ar-condicionado, sem aumento de tarifa.
Ao entrar na sala de trabalho, como um novo companheiro de verão, o ar-condicionado também trouxe novidades sonoras. Parceira na solidão do trabalho, essa toada do motor nunca nos deixa totalmente sós, mas também nunca muda o seu modo de estar presente.
O ar-condicionado aumentou minha produtividade. Mas como ignorar, com essa batida de motor, que ele é, num certo sentido, também movido a máquina?
O destino dos músicos de Nova York às vezes parece mais atraente. São expulsos para o ar livre e, como diz a canção brasileira, o artista tem que estar com o povo. E, felizmente, com um povo blasé, o que os deixa muito mais à vontade para ensaiar na rua.



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