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FERNANDO GABEIRA
A influência do ar-condicionado no dia-a-dia
Sonny Rollins é um músico
de jazz de alto nível, contemporâneo de Charles Mingus, John
Coltrane, Miles Davis e considerado um legítimo ocupante desse
olimpo do jazz.
Ele acaba de lançar seu novo
trabalho, "The Bridge", e, numa
entrevista sobre sua maneira de
compor e ensaiar, confessou que a
única forma de exercitar seu talento em Nova York é tocar no
passeio. De um modo geral, os vizinhos são implacáveis mesmo
com gênios como Rollins. E talvez
por isso as calçadas de Nova York
estejam sempre cheias de bons
músicos. A julgar pelos documentários de TV.
Escritores, hoje em dia, não têm
mais esse problema, porque trabalham com silenciosos computadores. Bucowsky, em seus relatos
biográficos, sempre fala do pavor
dos vizinhos com o batucar da
sua velha máquina de escrever.
Sonny Rollins contou que já ensaiou muito num andar imediatamente superior ao de uma vizinha grávida. Esse drama não
atinge os escritores, mas não quer
dizer que eles estejam livres de
outros. Um deles, no Rio, é o calor.
É quase impossível manter a produtividade a 38C.
Mesmo quem não gosta de ar-condicionado um dia tem de capitular, como foi o meu caso.
Tenho um amigo cujo instrumento de trabalho também é o
computador e sua capitulação
diante do ar-condicionado está
sendo lenta e gradual.
Por exemplo, ele não tem coragem de dormir com o aparelho ligado. Sem ar-condicionado, acorda muitas vezes à noite. Quando
acorda, liga o ar um pouquinho,
até o momento em que sente sono
de novo.
Desliga e volta ao sono interrompido pelo suor. Outras vezes
durante a noite repete o mesmo
gesto, até que amanhece, e é hora
de sair para o ar livre.
Como esse amigo é solteiro, conclui que acabou se casando com
uma tirânica máquina que regula seu sono como uma parceira
insaciável.
Minhas primeiras noites com
ar-condicionado, neste verão, foram estranhas. Ao longo da madrugada, o quarto ia esfriando e,
quando eu saía dele, ao amanhecer, recebia ao entrar na sala uma
lufada quente que alegrava meu
princípio de manhã.
Era como se estivesse saindo do
frio e abrisse a porta do avião em
dezembro, no Rio. A lufada de ar
quente me transmitia uma vida
em ebulição, algo como um elixir
mágico para curar o frio que o
corpo e o espírito acumularam no
inverno europeu.
Trabalho num ar-condicionado
meio problemático no Congresso.
Uma empresa inglesa andou pesquisando por ali e concluiu que
ele joga a sujeira de volta ao ambiente fechado.
O próprio ministro da Saúde,
José Serra, chegou a se interessar
pelo tema ar-condicionado depois da morte de Sérgio Motta.
Um dia talvez a gente tenha de
colocar esse problema para a arquitetura brasileira, uma tentativa cada vez mais aguçada de como não só escapar do calor dos
prédios, mas também dessas ilhas
de calor que estão se formando
nas grandes cidades e que estão se
tornando tema de estudos universitários aqui no Rio.
Lembro-me que a chegada do
ar-condicionado ao Brasil era
anunciada com orgulho nas laterais dos ônibus, nas portas dos
restaurantes.
Ar-condicionado. A palavra
inspirava um oásis no mundo calorento da grande cidade. O ar-condicionado ficou tão associado
a uma qualidade especial que os
motoristas de táxi advertem em
pequenos cartazes: ar-condicionado, sem aumento de tarifa.
Ao entrar na sala de trabalho,
como um novo companheiro de
verão, o ar-condicionado também trouxe novidades sonoras.
Parceira na solidão do trabalho,
essa toada do motor nunca nos
deixa totalmente sós, mas também nunca muda o seu modo de
estar presente.
O ar-condicionado aumentou
minha produtividade. Mas como
ignorar, com essa batida de motor, que ele é, num certo sentido,
também movido a máquina?
O destino dos músicos de Nova
York às vezes parece mais atraente. São expulsos para o ar livre e,
como diz a canção brasileira, o
artista tem que estar com o povo.
E, felizmente, com um povo blasé,
o que os deixa muito mais à vontade para ensaiar na rua.
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