São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

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MINHA HISTÓRIA ABU SHADI, 66

O último contador de histórias

(...)Comecei a contar histórias em 1990
(...)A pessoa precisa ter talento
Queria que meu filho continuasse a tradição(...)


PRISCILA PASTRE-ROSSI
ENVIADA À SÍRIA

Eu nasci em Damasco. Vim para este café [referindo-se ao Al Nofara, para onde vai todos os dias contar histórias aos clientes] quando era muito pequeno. Foi meu pai quem me trouxe, para que eu o ouvisse contar histórias.
Meu pai se foi. E o melhor jeito que eu encontrei para me lembrar dele é ler os livros que ele usava para contar suas histórias. De tanto ler, quase decorei tudo.
Em 1990 resolvi seguir os passos dele. Comecei a contar histórias também. Ninguém mais na minha família fazia isso. E eu achava que era até melhor do que ele. Tanto que alcancei mais fama. Vem muita gente me ver. Da Síria e de fora.
Eu conto histórias todos os dias, sete dias por semana. Vem aqui todo tipo de pessoa. Jovens, velhos, crianças... Só não gosto quando começam a falar uns com os outros, a fazer barulho. Aí eu paro. Fico quieto até que todo mundo faça silêncio para eu poder continuar.
Quando vem gente de fora, sei que não entendem nada do que eu digo [ele conta as histórias em árabe antigo]. Então, eu gosto de falar umas frases que decorei em outras línguas. Sei alguma coisa em inglês, espanhol, francês...
Uma vez veio aqui uma indiana. Eu não sabia falar seu idioma, mas queria cumprimentá-la. Então fiz um sinal para ela. E cantei um trecho de uma canção de novela indiana que ouvi uma vez.
Ela entendeu que eu a estava homenageando e veio em minha direção. Fez um cumprimento, me beijou e fez um sinal para que o guarda-costas dela me desse dinheiro. Quando ela se foi, ainda me saudou com muito carinho. Essas atitudes das pessoas ficam na memória.
Sei que contador de história é conhecido como mentiroso. Mas não ligo. Todo mundo é mentiroso. Às vezes, a mentira é mais bonita.
Tenho uma pequena loja, para onde vou todas as manhãs. Nessas horas, tenho muito tempo livre. E aproveito para ler. No meio da tarde venho aqui para o café e, à noite, vou para casa fazer amor com a minha mulher.
Tenho três filhos. Duas meninas e um menino. Ele está praticando uma arte antiga, aquela em que se coloca uma imagem contra a luz para fazer um desenho.
Não sei se ele vai seguir com meu trabalho algum dia. A pessoa precisa ter muito talento para contar histórias. E não pensar que vai ganhar dinheiro. Ganho mil aqui, 500 ali [500 libras sírias equivalem a US$ 10]. Na verdade, só ganho com o prazer de ver as pessoas me escutando.
Antes de terminar, um recado para quem está visitando a Síria pela primeira vez. Ela é imperdível. Quando vier, passe aqui para me contar o que achou do meu país. Eu ficaria muito contente.


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