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RAÍZES
Em 1994, fotógrafo da Folha viajou a Alessandria della Rocca, vilarejo na Sicília de onde vieram seus ancestrais
Brinde com cerveja sela aventura siciliana
PAULO GIANDALIA
Repórter-fotográfico
Gênova, 25 de janeiro de 1898. A
"famiglia" Giandalia embarca no
vapor Sempione com destino ao
"Brasile", terra muito longínqua
naquele final de século 19.
Eles vinham motivados por um
contrato com "la Província di (come se chiama?) San Paolo" que
trazia ao todo 1.026 agricultores
italianos, gente de várias regiões,
para trabalhar nas fazendas de café no interior paulista.
Antonino Giandalia, 39 -filho
de Andrea-, e Giuseppa Costa,
36 -filha de Antonino-, viajaram com os filhos Andrea, 14, Maria, 12, Antonino (meu avô), 8, e
Francesco, 2, como está registrado
no passaporte nş 1.312, expedido
pelo governo italiano e com chancela de Umberto 1ş, rei da Itália,
datada de 11 de outubro de 1897.
A "famiglia" morava em uma
minúscula vila encravada numa
montanha em Alessandria della
Rocca, perto de Agrigento, região
vinícola a caminho de Bivona.
Em 94, eu fiz esse caminho de
volta: um avião, dois trens e um
ônibus me levaram até um cotovelo de uma estrada sinuosa, com
pouco mais de 5.000 habitantes.
Uma vila perdida entre videiras,
cáctus e com a terra empedrada,
seca e cor-de-areia.
Em Agrigento, cidade colonizada por gregos, muçulmanos e espanhóis, como toda a Sicília, um
senhor, o Vicenzo, revelando ter
passado da conta no consumo de
vinho com pedaços de pêssego,
disse-nos que Alessandria era perto, bastava pegar um ônibus, na
verdade uma jardineira, e em uma
hora chegaríamos lá.
No caminho, pequenas vilas e
senhores de casquete sentados à
beira da estrada e poucos jovens
na rua deixavam claro que ali era a
Sicília. A expectativa de muita
poeira e cabras tangidas por um
camponês em contraluz não saiu
do filme dessa vez.
Ao chegarmos a Alessandria della Rocca, às 11h30, com fome, procuramos o primeiro restaurante
aberto, porque na Itália inteira a
sesta existe e almoça-se cedo.
Na porta, a placa dizia "aperto".
Entramos. Perguntamos ao dono,
na cozinha, se podíamos nos sentar. Ele responde: "È chiuso". Seu
filho pequeno, ao lado das mesas
vazias, grita: "Ma, papa, è aperto!". O carcamano grita, definitivo: "È chiuso!!".
Era realmente o coração da Sicília. Comemos sanduíche de mortadela em pão ciabata na única
mercearia da vila.
Aí, sede!
No bar della Rocca tivemos mais
sorte. A única mulher que vimos
em todo o tempo da nossa visita
nos serviu cerveja Nastro Azzurro.
Depois de ler a cópia do passaporte dos meus bisavós, lembrou-se
de uma "famiglia" Costa que talvez ainda estivesse ali.
Não tentamos achar nenhum
parente longínquo da minha bisavó nem do patriarca. Fizemos um
brinde ao Antonio, o Pai Grande,
e bebi um pouco da Sicília e sua
terra árida naquela cerveja.
No Brasil
A "famiglia" chegou a Santos em
14 de fevereiro de 1898. O vapor
Sempione, um belo navio para a
época, levara 20 dias para atravessar o Mediterrâneo e o Atlântico.
De Santos a São Paulo, foram de
trem, que partia de uma estação
dentro do porto e chegava a uma
outra na hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, no Brás, hoje o
Museu da Imigração.
O governo do Estado de São
Paulo, o contratante, destinou à
"famiglia" Giandalia trabalho na
fazenda de Ignácio Uchôa em Descalvado (270 km a noroeste de São
Paulo), perto de Pirassununga.
Esse é o ponto da história que
fica nebuloso, pois existe um documento que prova que meu avô
Antonino se casou com Marianna
Manescali em São Paulo, em 1911.
Portanto a "famiglia" viveu em
Descalvado por uma década e se
mudou para São Paulo, para a rua
Nilo, no bairro da Aclimação, por
volta de 1908 ou 1909. O tempo
que meu avô Antonino -"um vero uomo galante"- levou para
conhecer e conquistar uma das
"oriundi" foi de meses.
Meus bisavós ainda tiveram Anna e Giuseppe, o tio Pepe, o único
que conheci vivo, um carcamano
inesquecível, com seu grande nariz aquilino -"una bela napa"-,
e muito gozador.
Seis filhos e uma história de nomes herdados: meu bisavô Antonino, filho de Andrea, teve o primogênito Andrea, que teve um filho Antonio (Antonino já aportuguesado), que teve um filho Sergio, o Serginho, primo em segundo grau do meu pai, Pedro.
O primo Sergio -mesmo nome
do meu irmão- foi quem ficou
com o passaporte nş 1.312, em que
pude encontrar o fio da meada.
Não fosse minha prima, a bela
Ignez, olhos pretos como os de
outra prima, Neide, filha do tio
Antonio, o Tufi, e eu não teria na
verdade sabido do passaporte.
Eu cresci ouvindo "manadia!",
"porca la miseria!", "porco ladro!", imprecações ditas pelo meu
pai, Pedro, misturando dialeto e
português.
"Porco cane!", era a minha avó
Marianna quem dizia. Lembro dela, com seu 1,48 m, enrolando as
tiras de massa para fazer os fios do
fusilli. Os tubos finos de 30 cm tinham de ser perfeitos para que o
molho de tomate os percorresse
por inteiro, senão a "vecchia" gritava: "Porco cane!", com as mãos
pintadas de farinha, no nosso
apartamento na Vila Mariana.
No almoço, quando terminava
de comer a massa que ela mesma
tinha feito, meu pai não perdoava
e gritava: "Si abuta, manadia, si
abuta!", brincando com o fato de
ela ter comido exageradamente, o
que não era verdade, mas o que
importava era o sarro e a bronca
da minha mãe, Magally, neta de
portugueses e austríacos.
Entramos no caldeirão de raças
aqui no Brasil. Gostamos de ter
parentes italianos, portugueses e
austríacos, primos holandeses,
árabes, alemães, espanhóis, franceses, judeus, americanos, gregos,
japoneses e índios.
Talvez esse seja o segredo da
nossa alegria, a saudade de uma
terra aonde nunca fomos e o prazer de vivermos sob esse sol.
Quanto a minha "famiglia"
atual, somos verdadeiros carcamanos, eternos sicilianos, paulistas há um século.
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