São Paulo, segunda, 16 de março de 1998

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RAÍZES
Em 1994, fotógrafo da Folha viajou a Alessandria della Rocca, vilarejo na Sicília de onde vieram seus ancestrais
Brinde com cerveja sela aventura siciliana

PAULO GIANDALIA
Repórter-fotográfico

Gênova, 25 de janeiro de 1898. A "famiglia" Giandalia embarca no vapor Sempione com destino ao "Brasile", terra muito longínqua naquele final de século 19.
Eles vinham motivados por um contrato com "la Província di (come se chiama?) San Paolo" que trazia ao todo 1.026 agricultores italianos, gente de várias regiões, para trabalhar nas fazendas de café no interior paulista.
Antonino Giandalia, 39 -filho de Andrea-, e Giuseppa Costa, 36 -filha de Antonino-, viajaram com os filhos Andrea, 14, Maria, 12, Antonino (meu avô), 8, e Francesco, 2, como está registrado no passaporte nş 1.312, expedido pelo governo italiano e com chancela de Umberto 1ş, rei da Itália, datada de 11 de outubro de 1897.
A "famiglia" morava em uma minúscula vila encravada numa montanha em Alessandria della Rocca, perto de Agrigento, região vinícola a caminho de Bivona.
Em 94, eu fiz esse caminho de volta: um avião, dois trens e um ônibus me levaram até um cotovelo de uma estrada sinuosa, com pouco mais de 5.000 habitantes. Uma vila perdida entre videiras, cáctus e com a terra empedrada, seca e cor-de-areia.
Em Agrigento, cidade colonizada por gregos, muçulmanos e espanhóis, como toda a Sicília, um senhor, o Vicenzo, revelando ter passado da conta no consumo de vinho com pedaços de pêssego, disse-nos que Alessandria era perto, bastava pegar um ônibus, na verdade uma jardineira, e em uma hora chegaríamos lá.
No caminho, pequenas vilas e senhores de casquete sentados à beira da estrada e poucos jovens na rua deixavam claro que ali era a Sicília. A expectativa de muita poeira e cabras tangidas por um camponês em contraluz não saiu do filme dessa vez.
Ao chegarmos a Alessandria della Rocca, às 11h30, com fome, procuramos o primeiro restaurante aberto, porque na Itália inteira a sesta existe e almoça-se cedo.
Na porta, a placa dizia "aperto". Entramos. Perguntamos ao dono, na cozinha, se podíamos nos sentar. Ele responde: "È chiuso". Seu filho pequeno, ao lado das mesas vazias, grita: "Ma, papa, è aperto!". O carcamano grita, definitivo: "È chiuso!!".
Era realmente o coração da Sicília. Comemos sanduíche de mortadela em pão ciabata na única mercearia da vila.
Aí, sede!
No bar della Rocca tivemos mais sorte. A única mulher que vimos em todo o tempo da nossa visita nos serviu cerveja Nastro Azzurro. Depois de ler a cópia do passaporte dos meus bisavós, lembrou-se de uma "famiglia" Costa que talvez ainda estivesse ali.
Não tentamos achar nenhum parente longínquo da minha bisavó nem do patriarca. Fizemos um brinde ao Antonio, o Pai Grande, e bebi um pouco da Sicília e sua terra árida naquela cerveja.
No Brasil
A "famiglia" chegou a Santos em 14 de fevereiro de 1898. O vapor Sempione, um belo navio para a época, levara 20 dias para atravessar o Mediterrâneo e o Atlântico.
De Santos a São Paulo, foram de trem, que partia de uma estação dentro do porto e chegava a uma outra na hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, no Brás, hoje o Museu da Imigração.
O governo do Estado de São Paulo, o contratante, destinou à "famiglia" Giandalia trabalho na fazenda de Ignácio Uchôa em Descalvado (270 km a noroeste de São Paulo), perto de Pirassununga.
Esse é o ponto da história que fica nebuloso, pois existe um documento que prova que meu avô Antonino se casou com Marianna Manescali em São Paulo, em 1911.
Portanto a "famiglia" viveu em Descalvado por uma década e se mudou para São Paulo, para a rua Nilo, no bairro da Aclimação, por volta de 1908 ou 1909. O tempo que meu avô Antonino -"um vero uomo galante"- levou para conhecer e conquistar uma das "oriundi" foi de meses.
Meus bisavós ainda tiveram Anna e Giuseppe, o tio Pepe, o único que conheci vivo, um carcamano inesquecível, com seu grande nariz aquilino -"una bela napa"-, e muito gozador.
Seis filhos e uma história de nomes herdados: meu bisavô Antonino, filho de Andrea, teve o primogênito Andrea, que teve um filho Antonio (Antonino já aportuguesado), que teve um filho Sergio, o Serginho, primo em segundo grau do meu pai, Pedro.
O primo Sergio -mesmo nome do meu irmão- foi quem ficou com o passaporte nş 1.312, em que pude encontrar o fio da meada.
Não fosse minha prima, a bela Ignez, olhos pretos como os de outra prima, Neide, filha do tio Antonio, o Tufi, e eu não teria na verdade sabido do passaporte.
Eu cresci ouvindo "manadia!", "porca la miseria!", "porco ladro!", imprecações ditas pelo meu pai, Pedro, misturando dialeto e português.
"Porco cane!", era a minha avó Marianna quem dizia. Lembro dela, com seu 1,48 m, enrolando as tiras de massa para fazer os fios do fusilli. Os tubos finos de 30 cm tinham de ser perfeitos para que o molho de tomate os percorresse por inteiro, senão a "vecchia" gritava: "Porco cane!", com as mãos pintadas de farinha, no nosso apartamento na Vila Mariana.
No almoço, quando terminava de comer a massa que ela mesma tinha feito, meu pai não perdoava e gritava: "Si abuta, manadia, si abuta!", brincando com o fato de ela ter comido exageradamente, o que não era verdade, mas o que importava era o sarro e a bronca da minha mãe, Magally, neta de portugueses e austríacos.
Entramos no caldeirão de raças aqui no Brasil. Gostamos de ter parentes italianos, portugueses e austríacos, primos holandeses, árabes, alemães, espanhóis, franceses, judeus, americanos, gregos, japoneses e índios.
Talvez esse seja o segredo da nossa alegria, a saudade de uma terra aonde nunca fomos e o prazer de vivermos sob esse sol.
Quanto a minha "famiglia" atual, somos verdadeiros carcamanos, eternos sicilianos, paulistas há um século.



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