|
Texto Anterior | Índice
FERNANDO GABEIRA
Um crime à espera da grande reportagem
Durante muito tempo, ganhei a vida como repórter
policial. Sei que um dia voltarei à
profissão. Mas, se voltasse agora
para cobrir a história de Suzane
Louise von Richthofen, que arquitetou a morte dos pais, talvez me
sentisse um pouco deslocado.
Torrentes de interpretações brotam nas páginas dos jornais e nos
programas de TV. Psicólogos, pedagogos, sociólogos, todos entram
na dança simbólica que nos levará à explicação da tragédia.
Como nadar nesse mar tempestuoso com a humildade de um repórter que jamais se contenta
com o que lhe é dado?
Ouvir os acusados era uma
questão de honra entre nós, mesmo quando havia uma forte coincidência entre os fatos e seus depoimentos na polícia.
Isso não significa que tenham
mentido para a polícia. Mas, às
vezes, o problema central desses
interrogatórios é fechar a história
com uma confissão, e esta costuma ser simples e objetiva, como a
de Suzane.
Faltam detalhes que não interessam à polícia, mas que podem
servir de explicação para o crime.
Tudo bem, seria mais uma explicação entre centenas, mas com a
vantagem de nascer da própria
boca da acusada.
Na primeira noite, a televisão
enfatizou a maconha. Creio que
aparecia a delegada Cintia Tucunduva Gomes dizendo, com
voz pausada, que Suzane e o namorado tinham fumado maconha na noite do crime.
A maconha tem mil e uma utilidades. A milionésima primeira é
servir de bode expiatório. A TV
gasta grande parte do tempo afirmando que a maconha é uma
droga que causa a síndrome da
motivação. Mas não se dá ao luxo
de explicar como algo que tira a
motivação pode impulsionar
uma decisão tão dramática.
Um analista de esquerda poderia culpar o mercado. Por que
não? Suzane queria o dinheiro da
herança, ficar rica da noite para o
dia. Esse é o exemplo dos especuladores, que dão grandes tacadas,
fazem fortunas sem passar pelo
processo de produção ou se incomodar com o que acontecerá com
os perdedores, diria o analista de
esquerda.
Incapacidade de viver uma
frustração, ausência de diálogo
entre pais e filhos, todos esses temas são importantes.
Um dramaturgo poderia comparar Suzane e o namorado com
Romeu e Julieta e concluir que
eles escolheram outro final para o
drama de Shakespeare.
Nada disso mata a fome de dados, de detalhes que compõem
uma história. Aquele gorro preto
da delegada Tucunduva na noite
chuvosa da reconstituição do crime, as tatuagens no corpo do irmão do namorado de Suzane,
tantas pequenas coisas sem sentido que, em contato entre si, produzem um saber que nasce do repórter e não dos grandes intérpretes.
A chave para o sucesso do livro
de Truman Capote, "A Sangue
Frio", foi essa reverência aos pequenos fatos, essa renúncia pela
busca das causas profundas, a dedicação ao garimpo de detalhes
que acabam fornecendo uma base mais ampla para todos os que
querem explicar.
Furtivamente também, creio ter
visto um vizinho dos irmãos acusados do crime dizer que o cachorro deles fazia cocô na rua e
eles não limpavam. Isso mostra
que os repórteres continuam trabalhando, como sempre.
Acontece que desta vez foi tão
volumosa a torrente interpretativa que isso poderia inibi-los, levá-los à ilusão de que está tudo explicado e nada mais há ainda a saber sobre Suzane, seu namorado e
o irmão dele, assim como as relações entre os Von Richthofen.
Num episódio desse tipo, quanto menos certezas houver, melhor
proveito para todos. Quem vive
em Copacabana e vê os assaltos se
sucederem dentro de prédios da
classe média pode compreender
como é resignada essa visão que
associa o crime à pobreza.
Texto Anterior: Memória: Unesco coloca 33 locais em lista de risco Índice
|