São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Um crime à espera da grande reportagem

Durante muito tempo, ganhei a vida como repórter policial. Sei que um dia voltarei à profissão. Mas, se voltasse agora para cobrir a história de Suzane Louise von Richthofen, que arquitetou a morte dos pais, talvez me sentisse um pouco deslocado.
Torrentes de interpretações brotam nas páginas dos jornais e nos programas de TV. Psicólogos, pedagogos, sociólogos, todos entram na dança simbólica que nos levará à explicação da tragédia.
Como nadar nesse mar tempestuoso com a humildade de um repórter que jamais se contenta com o que lhe é dado?
Ouvir os acusados era uma questão de honra entre nós, mesmo quando havia uma forte coincidência entre os fatos e seus depoimentos na polícia.
Isso não significa que tenham mentido para a polícia. Mas, às vezes, o problema central desses interrogatórios é fechar a história com uma confissão, e esta costuma ser simples e objetiva, como a de Suzane.
Faltam detalhes que não interessam à polícia, mas que podem servir de explicação para o crime. Tudo bem, seria mais uma explicação entre centenas, mas com a vantagem de nascer da própria boca da acusada.
Na primeira noite, a televisão enfatizou a maconha. Creio que aparecia a delegada Cintia Tucunduva Gomes dizendo, com voz pausada, que Suzane e o namorado tinham fumado maconha na noite do crime.
A maconha tem mil e uma utilidades. A milionésima primeira é servir de bode expiatório. A TV gasta grande parte do tempo afirmando que a maconha é uma droga que causa a síndrome da motivação. Mas não se dá ao luxo de explicar como algo que tira a motivação pode impulsionar uma decisão tão dramática.
Um analista de esquerda poderia culpar o mercado. Por que não? Suzane queria o dinheiro da herança, ficar rica da noite para o dia. Esse é o exemplo dos especuladores, que dão grandes tacadas, fazem fortunas sem passar pelo processo de produção ou se incomodar com o que acontecerá com os perdedores, diria o analista de esquerda.
Incapacidade de viver uma frustração, ausência de diálogo entre pais e filhos, todos esses temas são importantes.
Um dramaturgo poderia comparar Suzane e o namorado com Romeu e Julieta e concluir que eles escolheram outro final para o drama de Shakespeare.
Nada disso mata a fome de dados, de detalhes que compõem uma história. Aquele gorro preto da delegada Tucunduva na noite chuvosa da reconstituição do crime, as tatuagens no corpo do irmão do namorado de Suzane, tantas pequenas coisas sem sentido que, em contato entre si, produzem um saber que nasce do repórter e não dos grandes intérpretes.
A chave para o sucesso do livro de Truman Capote, "A Sangue Frio", foi essa reverência aos pequenos fatos, essa renúncia pela busca das causas profundas, a dedicação ao garimpo de detalhes que acabam fornecendo uma base mais ampla para todos os que querem explicar.
Furtivamente também, creio ter visto um vizinho dos irmãos acusados do crime dizer que o cachorro deles fazia cocô na rua e eles não limpavam. Isso mostra que os repórteres continuam trabalhando, como sempre.
Acontece que desta vez foi tão volumosa a torrente interpretativa que isso poderia inibi-los, levá-los à ilusão de que está tudo explicado e nada mais há ainda a saber sobre Suzane, seu namorado e o irmão dele, assim como as relações entre os Von Richthofen.
Num episódio desse tipo, quanto menos certezas houver, melhor proveito para todos. Quem vive em Copacabana e vê os assaltos se sucederem dentro de prédios da classe média pode compreender como é resignada essa visão que associa o crime à pobreza.


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