São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VIDRADO NAS GERAIS

Mestre vidreiro mostra técnica em Poços

Radicado nos EUA, o veneziano Lino Tagliapietra tem obra exposta no museu Metropolitan de NY

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA EM POÇOS DE CALDAS (MG)

Um dos maiores mestres vidreiros da atualidade, o veneziano Lino Tagliapietra (www.linotagliapietra.com), que nasceu em 1934, na ilha de Murano, realiza curta temporada de trabalho em Poços de Caldas, estância hidrotermal no sul de Minas Gerais.
Herdeiro de uma tradição quase milenar de produzir vidros artísticos, Tagliapietra trabalhou uma semana na cristaleria Cá d'Oro, de seu amigo e compatriota Mario Seguso, 78.
Lino foi aprendiz do famoso mestre muranês Archimede Seguso, parente de Mario. Ele tornou-se mestre aos 21 anos, passando a trabalhar em vários dos principais estúdios de vidro de Murano como designer de peças e soprador.
Nos anos 1960, começou a desenvolver seus próprios conceitos. Em 1979, Lino mudou-se para os EUA, onde vive. Nas últimas décadas, dividiu conhecimentos com artistas vidreiros de todo o mundo. Considerado responsável por uma renascença na arte de fazer vidro, sobretudo nos EUA, Tagliapietra publicou livros e recebeu diversos prêmios - seus trabalhos estão expostos em inúmeros museus.
Mario Seguso, seu anfitrião no Brasil, está radicado em Poços de Caldas desde 1965, quando fundou a cristaleria Cá d'Oro. E foi nessa cidade mineira que Lino Tagliapietra concedeu, juntamente com Seguso, entrevista à Folha:

 

FOLHA - Como surgiu a vontade de mostrar sua arte no Brasil?
LINO TAGLIAPIETRA -
Pela amizade com o Mario Seguso e para conhecer o país. É a terceira vez que venho ao Brasil, mas, nas duas vezes anteriores, não tive a oportunidade de conhecer os minerais nem de produzir os vidros artísticos por aqui.

FOLHA - Como tem sido a experiência de trabalhar com os minerais brasileiros? Quais as expectativas?
TAGLIAPIETRA -
Já experimentei algumas pequenas amostras -e até agora estou muito satisfeito com o resultado. Gostaria de fazer uma mostra em São Paulo com vidros importantes feitos com material 100% brasileiro, que se chamaria "Terras do Brasil". É um país riquíssimo geologicamente. Tenho certeza de que temos a possibilidade de trabalhar esses materiais e de fazer vidro com as técnicas de Murano, mas com tudo feito no Brasil, 100% brasileiro.

FOLHA - Mario Seguso elogiou muito a areia brasileira. O que você sabe da areia e das condições de trabalho para um vidreiro no Brasil?
TAGLIAPIETRA -
A areia brasileira me interessa, mas meu intuito principal não é exatamente fazer um vidro puríssimo, e sim fazer um vidro brasileiro, descobrir o que pode ser feito de diferente usando só materiais encontrados no Brasil. E mostrar que o vidro feito no Brasil não é inferior ao vidro feito em Murano. Como disse, o Brasil é um país muito rico geologicamente, muito rico em água, minerais e também em história. O que falta ao Brasil é acreditar mais em si próprio.
MARIO SEGUSO - Aqui no Brasil temos areia em grandes quantidades. Não temos os problemas que existem na Itália, na Europa, onde a areia é basicamente areia de praia. Lá faltam areias isentas de óxidos, o que pode alterar as tonalidades, tirando a transparência do vidro. Levei amostras da areia brasileira para o laboratório que, em Veneza, analisa a qualidade dos materiais. Eles ficaram muito impressionados com a pureza e a qualidade. É a melhor que já analisaram, segundo disseram.

FOLHA - No passado, os mestres vidreiros italianos mantinham suas técnicas em segredo, mas dizem que o senhor é conhecido por partilhar conhecimento...
TAGLIAPIETRA -
É comprovado historicamente que Murano e Veneza não tinham propriamente tantos segredos em relação à fabricação dos vidros artísticos. Mais que um segredo técnico, era um segredo comercial. O que havia eram segredos comerciais com certos tipos de vidros, especialmente o vidro produzido para janelas. Uma vez divulgados, eles poderiam prejudicar a economia veneziana, que se cercava de proteções.
Os mestres venezianos sempre tiveram, ao longo da história, o hábito de rodar pela Europa e pelo mundo mostrando sua técnica. Durante um período do ano, entre julho e outubro, os mestres vidreiros viajavam para ganhar dinheiro -e para mostrar diplomaticamente o talento e a técnica do vidro artístico. É claro que essa fama de segredos e intrigas existe, mas, na verdade, houve apenas dois assassinatos em toda a história de Veneza relacionados aos segredos do vidro. Um deles no fim do século 18, em Paris, porque levaram as técnicas para fazer o vidro de janelas.

FOLHA - Existe rivalidade entre as diferentes escolas de vidro artístico, entre a tradição veneziana e as de outras regiões do mundo?
TAGLIAPIETRA -
Não existem rivalidades artísticas, mas, sim, diferentes escolas. Temos a escola boêmia, a sueca, a espanhola, a francesa, a mexicana -influenciada pela espanhola-, a norte-americana... Mas é claro que existe rivalidade comercial. O vidro nos EUA é tido como um vidro jovem, não tem a história de Murano. Mas já havia vidro sendo produzido nos EUA apenas 70 anos após a viagem de Colombo. Então não é assim tão jovem. Trata-se de uma grande indústria, que gera muitos empregos. SEGUSO - O soprador de vidro é o ponto máximo de um processo que movimenta uma indústria. Seria importante criar condições para ensinar aos jovens as técnicas de trabalho, para exportar mão-de-obra brasileira qualificada para a Europa, da mesma forma que fazemos com jogadores de futebol, pois lá esse tipo de profissional está em falta hoje em dia. TAGLIAPIETRA - No Brasil não há ainda uma escola de vidreiros artísticos propriamente dita. O Brasil não é apenas um belo país. Debaixo dessas árvores há uma imensa riqueza. O Brasil é um país tão rico em recursos como em humanidade. O vidro tem um aspecto romântico.
Além disso, vidro é cultura. É preciso haver nesse processo o aço, o ferro, colecionadores que comprem...

FOLHA - Como o senhor vê os rumos do vidro artístico?
TAGLIAPIETRA -
É importante dizer que o vidro foi muito valorizado nas últimas décadas. Hoje existem museus importantes que buscam vidros. No meu caso, tenho, por exemplo, um vidro no Metropolitan Museum de Nova York. E tenho vidros expostos em diversos museus e galerias de renome. Tenho peças expostas ao lado de obras de Brancusi [1876-1957, artista romeno, pioneiro da escultura abstrata]. Isso é uma honra.

FOLHA - O que o senhor pode falar da produção atual dos vidros artísticos em Murano?
TAGLIAPIETRA -
O vidro artístico de Murano passa por um processo de decadência. Quase não há mais qualidade nem quantidade sendo produzida: há pouca produção, a qualidade caiu. Em Veneza, o vidro foi "turistizado". Não tenho números ou dados concretos. O que eu posso dizer é que há cerca de 20 anos tínhamos 3.000, 4.000 pessoas que dependiam do vidro em Murano. Hoje não passam de 400. Havia uma série de grandes mestres e jovens que tinham a real possibilidade de se tornarem mestres. Tempos atrás, uma fábrica em Murano tinha cinco grandes mestres.
Agora, não passam de dois ou três. Muitos se foram, vieram ao Brasil, ao Chile, à Venezuela... Atualmente, jovens de todo o mundo vão aos EUA para estudar o vidro -e não a Murano. Eu mesmo, se tivesse um filho, não o mandaria a Murano para aprender e, sim, aos EUA.
Por razões sociais, falta de apoio ou necessidade, há uma fuga de jovens, e de pessoas nem tão jovens, que foram trabalhar com o turismo. Isso porque elas ganham a mesma coisa - ou até mais- trabalhando a metade do tempo. Não há quase mais indústrias além do turismo, porque quase todos migraram para essa área. A responsabilidade é política, da grande política e da política local, que não dá o apoio necessário. Não há capacidade política para ajudar Murano a crescer novamente -e a se salvar.
SEGUSO - O fato de eu ter insistido em radicar minha fábrica no Brasil me custou muito sacrifício. Ninguém me atrapalhou, mas também não me ajudou. Apenas trabalhei e me deixaram trabalhar. Hoje acho que a produção de vidro artístico no Brasil atingiu um ponto que os países vizinhos não atingiram. Algo definitivamente já foi plantado aqui.
TAGLIAPIETRA - É importante ressaltar que já há no Brasil, no caso da família Seguso, uma segunda geração envolvida na produção do vidro artístico.


Texto Anterior: Compras e mostras tomam o fim de tarde
Próximo Texto: Ásia: Conflitos no Tibete castigam o turismo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.