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VIDRADO NAS GERAIS
Mestre vidreiro mostra técnica em Poços
Radicado nos EUA, o veneziano Lino Tagliapietra tem obra exposta no museu Metropolitan de NY
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
EM POÇOS DE CALDAS (MG)
Um dos maiores mestres vidreiros da atualidade, o veneziano Lino Tagliapietra
(www.linotagliapietra.com),
que nasceu em 1934, na ilha de
Murano, realiza curta temporada de trabalho em Poços de
Caldas, estância hidrotermal
no sul de Minas Gerais.
Herdeiro de uma tradição
quase milenar de produzir vidros artísticos, Tagliapietra
trabalhou uma semana na cristaleria Cá d'Oro, de seu amigo e
compatriota Mario Seguso, 78.
Lino foi aprendiz do famoso
mestre muranês Archimede
Seguso, parente de Mario.
Ele tornou-se mestre aos 21
anos, passando a trabalhar em
vários dos principais estúdios
de vidro de Murano como designer de peças e soprador.
Nos anos 1960, começou a
desenvolver seus próprios conceitos. Em 1979, Lino mudou-se para os EUA, onde vive. Nas
últimas décadas, dividiu conhecimentos com artistas vidreiros de todo o mundo.
Considerado responsável
por uma renascença na arte de
fazer vidro, sobretudo nos
EUA, Tagliapietra publicou livros e recebeu diversos prêmios - seus trabalhos estão expostos em inúmeros museus.
Mario Seguso, seu anfitrião
no Brasil, está radicado em Poços de Caldas desde 1965,
quando fundou a cristaleria Cá
d'Oro. E foi nessa cidade mineira que Lino Tagliapietra
concedeu, juntamente com Seguso, entrevista à Folha:
FOLHA - Como surgiu a vontade de
mostrar sua arte no Brasil?
LINO TAGLIAPIETRA - Pela amizade
com o Mario Seguso e para conhecer o país. É a terceira vez
que venho ao Brasil, mas, nas
duas vezes anteriores, não tive
a oportunidade de conhecer os
minerais nem de produzir os
vidros artísticos por aqui.
FOLHA - Como tem sido a experiência de trabalhar com os minerais
brasileiros? Quais as expectativas?
TAGLIAPIETRA - Já experimentei
algumas pequenas amostras
-e até agora estou muito satisfeito com o resultado. Gostaria
de fazer uma mostra em São
Paulo com vidros importantes
feitos com material 100% brasileiro, que se chamaria "Terras
do Brasil". É um país riquíssimo
geologicamente. Tenho certeza
de que temos a possibilidade de
trabalhar esses materiais e de
fazer vidro com as técnicas de
Murano, mas com tudo feito no
Brasil, 100% brasileiro.
FOLHA - Mario Seguso elogiou muito a areia brasileira. O que você sabe
da areia e das condições de trabalho
para um vidreiro no Brasil?
TAGLIAPIETRA - A areia brasileira
me interessa, mas meu intuito
principal não é exatamente fazer um vidro puríssimo, e sim
fazer um vidro brasileiro, descobrir o que pode ser feito de
diferente usando só materiais
encontrados no Brasil. E mostrar que o vidro feito no Brasil
não é inferior ao vidro feito em
Murano. Como disse, o Brasil é
um país muito rico geologicamente, muito rico em água, minerais e também em história. O
que falta ao Brasil é acreditar
mais em si próprio.
MARIO SEGUSO - Aqui no Brasil
temos areia em grandes quantidades. Não temos os problemas
que existem na Itália, na Europa, onde a areia é basicamente
areia de praia. Lá faltam areias
isentas de óxidos, o que pode alterar as tonalidades, tirando a
transparência do vidro. Levei
amostras da areia brasileira para o laboratório que, em Veneza, analisa a qualidade dos materiais. Eles ficaram muito impressionados com a pureza e a
qualidade. É a melhor que já
analisaram, segundo disseram.
FOLHA - No passado, os mestres vidreiros italianos mantinham suas
técnicas em segredo, mas dizem
que o senhor é conhecido por partilhar conhecimento...
TAGLIAPIETRA - É comprovado
historicamente que Murano e
Veneza não tinham propriamente tantos segredos em relação à fabricação dos vidros artísticos. Mais que um segredo
técnico, era um segredo comercial. O que havia eram segredos
comerciais com certos tipos de
vidros, especialmente o vidro
produzido para janelas. Uma
vez divulgados, eles poderiam
prejudicar a economia veneziana, que se cercava de proteções.
Os mestres venezianos sempre
tiveram, ao longo da história, o
hábito de rodar pela Europa e
pelo mundo mostrando sua
técnica. Durante um período
do ano, entre julho e outubro,
os mestres vidreiros viajavam
para ganhar dinheiro -e para
mostrar diplomaticamente o
talento e a técnica do vidro artístico. É claro que essa fama de
segredos e intrigas existe, mas,
na verdade, houve apenas dois
assassinatos em toda a história
de Veneza relacionados aos segredos do vidro. Um deles no
fim do século 18, em Paris, porque levaram as técnicas para fazer o vidro de janelas.
FOLHA - Existe rivalidade entre as
diferentes escolas de vidro artístico,
entre a tradição veneziana e as de
outras regiões do mundo?
TAGLIAPIETRA - Não existem rivalidades artísticas, mas, sim,
diferentes escolas. Temos a escola boêmia, a sueca, a espanhola, a francesa, a mexicana
-influenciada pela espanhola-, a norte-americana... Mas é
claro que existe rivalidade comercial. O vidro nos EUA é tido
como um vidro jovem, não tem
a história de Murano. Mas já
havia vidro sendo produzido
nos EUA apenas 70 anos após a
viagem de Colombo. Então não
é assim tão jovem. Trata-se de
uma grande indústria, que gera
muitos empregos.
SEGUSO - O soprador de vidro é
o ponto máximo de um processo que movimenta uma indústria. Seria importante criar
condições para ensinar aos jovens as técnicas de trabalho,
para exportar mão-de-obra
brasileira qualificada para a
Europa, da mesma forma que
fazemos com jogadores de futebol, pois lá esse tipo de profissional está em falta hoje em dia.
TAGLIAPIETRA - No Brasil não há
ainda uma escola de vidreiros
artísticos propriamente dita. O
Brasil não é apenas um belo
país. Debaixo dessas árvores há
uma imensa riqueza. O Brasil é
um país tão rico em recursos
como em humanidade. O vidro
tem um aspecto romântico.
Além disso, vidro é cultura. É
preciso haver nesse processo o
aço, o ferro, colecionadores que
comprem...
FOLHA - Como o senhor vê os rumos do vidro artístico?
TAGLIAPIETRA - É importante dizer que o vidro foi muito valorizado nas últimas décadas. Hoje
existem museus importantes
que buscam vidros. No meu caso, tenho, por exemplo, um vidro no Metropolitan Museum
de Nova York. E tenho vidros
expostos em diversos museus e
galerias de renome. Tenho peças expostas ao lado de obras de
Brancusi [1876-1957, artista romeno, pioneiro da escultura
abstrata]. Isso é uma honra.
FOLHA - O que o senhor pode falar
da produção atual dos vidros artísticos em Murano?
TAGLIAPIETRA - O vidro artístico
de Murano passa por um processo de decadência. Quase não
há mais qualidade nem quantidade sendo produzida: há pouca produção, a qualidade caiu.
Em Veneza, o vidro foi "turistizado". Não tenho números ou
dados concretos. O que eu posso dizer é que há cerca de 20
anos tínhamos 3.000, 4.000
pessoas que dependiam do vidro em Murano. Hoje não passam de 400. Havia uma série de
grandes mestres e jovens que
tinham a real possibilidade de
se tornarem mestres. Tempos
atrás, uma fábrica em Murano
tinha cinco grandes mestres.
Agora, não passam de dois ou
três. Muitos se foram, vieram
ao Brasil, ao Chile, à Venezuela... Atualmente, jovens de todo
o mundo vão aos EUA para estudar o vidro -e não a Murano.
Eu mesmo, se tivesse um filho,
não o mandaria a Murano para
aprender e, sim, aos EUA.
Por razões sociais, falta de
apoio ou necessidade, há uma
fuga de jovens, e de pessoas
nem tão jovens, que foram trabalhar com o turismo. Isso porque elas ganham a mesma coisa
- ou até mais- trabalhando a
metade do tempo. Não há quase mais indústrias além do turismo, porque quase todos migraram para essa área. A responsabilidade é política, da
grande política e da política local, que não dá o apoio necessário. Não há capacidade política
para ajudar Murano a crescer
novamente -e a se salvar.
SEGUSO - O fato de eu ter insistido em radicar minha fábrica
no Brasil me custou muito sacrifício. Ninguém me atrapalhou, mas também não me ajudou. Apenas trabalhei e me deixaram trabalhar. Hoje acho que
a produção de vidro artístico no
Brasil atingiu um ponto que os
países vizinhos não atingiram.
Algo definitivamente já foi
plantado aqui.
TAGLIAPIETRA - É importante
ressaltar que já há no Brasil, no
caso da família Seguso, uma segunda geração envolvida na
produção do vidro artístico.
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