São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DE VOLTA AO FUTURO

Surfista pioneiro lembra a aventura da caça às ondas

Sidão Tenucci conta como era o clima do balneário trinta anos atrás e relata um dia de surfe em 1975

PRISCILA PASTRE-ROSSI
DA REPORTAGEM LOCAL

No Havaí, entre uma onda e outra, o surfista Sidão Tenucci, 53, encontrou um tempinho para responder o e-mail enviado pela reportagem da Folha na semana passada.
A idéia era que o criador da primeira grande marca de surfwear do Brasil -a OP (Ocean Pacific)- e autor do livro "O Surfista Peregrino" falasse das suas memórias guarujaenses, do início do surfe naquelas praias no final dos anos 1960.
Não foi preciso pedir duas vezes. Nem enviar as perguntas que estavam previstas na pauta. A resposta de Sidão foi um relato um tanto apaixonado, um tanto dramático e outro tanto divertido sobre um dia de ondas perigosas no verão de 1975 que, para virar roteiro de filme -só falta ter tubarão.
Abaixo, o e-mail de resposta do primeiro dos cinco fãs do Guarujá que conversaram com a reportagem para esta edição.

 

O Guarujá foi e sempre será o meu paraíso. Como aquela mulher que já não tem mais 18 anos, mas ainda tem o mesmo cheiro, a mesma sensualidade.
Mesmo hoje, com a poluição das praias e com a segurança comprometida pela histórica discrepância social, o Guarujá ainda é um lugar especial.
Em 1975, a rodovia Piaçagüera, que liga o continente à ilha, não existia. A balsa era um teste de paciência aos freqüentadores. A fila podia demorar horas e chegar até o aquário de Santos. Mas, quando chegávamos ao "Guaru", a cidade era nossa. Todos se conheciam e caminhavam -seguros- pela areia, até a madrugada.
No verão, a molecada chegava em 1º de dezembro e ia embora em 1º de março. A galera, literalmente, se mudava para a ilha. Nessa época, é provável que o número de surfistas no país inteiro não chegasse a 200.
Não havia surfe no Nordeste nem no Sul. Dá para imaginar? Somente Rio, São Paulo e Santos tinham feito contato com o milenar esporte dos reis havaianos. Além dos filhos dos zeladores dos prédios, era a moçada de Sampa que ia o ano inteiro curtir o esporte.
Figuras como Thyola, Brito, Egas, Ad, Carlicha Motta, Teixeira, Dragão, Zezinho, Serjão, Magoo, Mané e Lucha eram tão íntimos do lugar quanto as cracas das pedras dos costões.
Sem filmes, revistas ou escolinhas de surfe, todos tinham de aprender a surfar na orelhada, na tentativa, num incansável vaivém de erros e acertos, no caldo, no mico.
Histórias? Trocentas! A primeira que me vem à cabeça aconteceu num fim de tarde de ressaca forte, no verão de 1975.
Ninguém na água. Do lado esquerdo da ilha, na praia das Pitangueiras, rolava um surfe grande, mas possível.
Entramos na água. Eu e o meu amigo Roberto Teixeira, que desde então virou meu irmão e companheiro de viagens por cantos remotos do planeta.
O canal estava bem mexido com a turbulência e a violência da ondulação. Conseguimos varar depois de várias tentativas. Surfamos algumas horas sem problemas, a não ser pelos caldos de praxe. Mas engolir água salgada e ter as narinas e os seios nasais lavados pelo impacto das ondas já era rotina.
Peguei uma onda para a esquerda, para dentro do canal. Acelerando na parede de água turva e espumada, tentei uma batida mais ousada.
Foi quando a onda fechou e me jogou para o alto, ainda em águas profundas. Ao cair, senti a cordinha que me prendia à prancha me arrastar por alguns metros, e, em seguida, dar um estalo. Havia se rompido.
Comecei a ser embrulhado e desossado, com força, para cima e para baixo, como se estivesse dentro de uma máquina de lavar roupas.
Depois do caldo, a barriga da perna se contraiu e endureceu. A câimbra não estava no programa, mas se instalou sem dó. Afundei com a dor. Puxei a perna até a barriga para distender os músculos e liberar a contração, mas não adiantou.
Ao contrário, a barriga da perna direita também foi dominada por uma câimbra. Aí não deu jeito: afundei como um prego no meio da espumeira que convergia da ilha para o mar aberto.
Por sorte, o meu cabelo batia no ombro naquela época. Ele subiu para a superfície antes de mim, como se quisesse respirar o ar que eu mesmo não conseguia. Devia estar aparecendo lá em cima, flutuando como uma água-viva de cabeça para baixo, entre um caldo e outro.
Quando eu começava a apagar, senti um puxão para cima que quase arrancou a raiz dos meus cabelos. O Teixeira tinha visto a situação e remara ao meu encontro. Ele visualizou o meu periscópio capilar subindo e descendo entre as ondas.
Não teve dúvidas: me puxou pela crina e, devagar, me trouxe ao ar. Já tinha engolido uma bela quantidade da urina de Netuno e foi com satisfação que entrei novamente em contato com o oxigênio.
Fomos sendo arrastados pela prancha dele para a praia, enquanto nós dois ajudávamos como podíamos, remando com as forças que nos restavam.
É, meu companheiro... Se não fosse por você, essa não seria mais uma história engraçada do Guarujá, mas a minha última aventura, certamente contada por terceiros.


Texto Anterior: De volta ao futuro: Mistério cerca morte de Santos Dumont no Guarujá
Próximo Texto: Para Andraus, surfe na região está mais democrático hoje
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.