São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LEGADO RUSSO

Letras em cirílico não inibem visita a monumentos de Moscou e São Petersburgo

Beleza supera "analfabetismo" local

DO ENVIADO ESPECIAL À RÚSSIA

Há dias o primeiro-ministro russo, Michail Kasyanov, lamentou que apenas 8 milhões de turistas tenham visitado seu país no ano passado. Mas, se o número é pequeno -um décimo daquele registrado na França-, a culpa é em parte de seu próprio governo.
Ele gastou em 2001 apenas US$ 140 mil na divulgação externa de seus inúmeros pontos de atração. Com essa ridícula dotação, pouco fez para quebrar o gelo agregado à imagem da Rússia durante a Guerra Fria e o longo período de regime comunista (1917-1991).
O governo também não se esforçou para tornar o turismo mais amigável aos estrangeiros. Não custaria quase nada, por exemplo, acrescentar a transcrição em alfabeto latino às denominações das ruas de São Petersburgo ou ao nome dos pintores russos no museu Púshkin, de Moscou.
Na Grécia, com outro alfabeto local estranho aos não-iniciados, o governo faz isso. Pensa bem mais nos turistas, que são, aliás, a principal fonte de renda externa.
Mesmo assim, é secundário o desconforto provocado pelo efêmero analfabetismo que vitima um ocidental em meio a placas grafadas em alfabeto cirílico.
Isso porque a Rússia é um país superlativamente belo.
As edificações horrorosas que exprimem a suposta idéia de "grandeza proletária" -foi o gênero arquitetônico predileto do ditador Joseph Stálin- diluem-se em panoramas em que predominam palácios do século 18.
Talvez a única vantagem do chamado socialismo real tenha sido a preservação do patrimônio urbano herdado dos tempos dos czares (imperadores).
Sem capitalismo e especulação imobiliária, as cidades russas se livraram dos paliteiros de arranha-céus, mesmo que o comunismo tenha feito um pouco desse serviço sujo: Moscou tem sete grandes prédios tipicamente stalinistas e parecidos um com o outro, como o da universidade, com 40 mil salas, ou o do hotel Ucrânia, com 34 andares e 1.036 apartamentos.
São Petersburgo escapou dessa epidemia visual. É linda, uma mistura de Paris e Praga. Fundada em 1703 pelo czar Pedro, o Grande, não tem fortificações medievais ou templos góticos. Criou uma simulação de passado, como o barroco produzido no século 19 para a catedral de Santo Isaac.
As catedrais russas, com torres encimadas por abóbadas em forma de cebola, são avessas a qualquer modernidade. A comunidade ortodoxa inaugurou em Moscou, há coisa de dois anos, a catedral do Salvador, coberta de mármore e pedras semipreciosas. Mas parece um prédio tão antigo quanto os erguidos no século 16 no reinado de Ivan, o Terrível.
Ivan 4º é um dos ícones históricos do país. Durante o seu reinado (1547-1584), a Rússia expandiu seu território e instaurou uma monarquia absolutista. Ivan é também suspeito de ter matado suas mulheres e comprovadamente matou o próprio filho. São narrativas que rendem bons momentos de visita ao Kremlin.
Em São Petersburgo a monarca de quem se fala é Catarina 2ª, a Grande (1729-1796). Princesa alemã que se casou com Pedro 3º, foi cúmplice dos oficiais que o estrangularam. Teve mais de 20 amantes e foi amiga de filósofos franceses. Deu à então capital refinamento intelectual e artístico.
O último dos ícones é mais controvertido. Mas seu corpo embalsamado ainda é visitado cinco dias por semana, das 10h às 13h, no mausoléu da praça Vermelha.
Vladimir Ilich Lênin (1870-1924), líder da Revolução Bolchevista, está com seus museus às moscas. Mas seu rosto, a foice e o martelo estão nas lojas de suvenires, nas boinas vendidas por mascates moscovitas da rua Arbat e na cabeça dos saudosistas do comunismo, 30% dos votos nas duas últimas eleições.
Esse Lênin como curiosidade turística tem pouco a ver com a história. Pode virar até um símbolo pitoresco. A exemplo do Mickey Mouse na Disneylândia.

(JOÃO BATISTA NATALI)


Texto Anterior: Rússia: País expõe herança requintada na cultura dos czares
Próximo Texto: Pacotes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.