São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

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Escritores esmiúçam a São Paulo recente

LITERATURA Jardins, Vila Nova Conceição e Vila Madalena estão entre os bairros em que vivem personagens de ficção

THIAGO MOMM
DA REPORTAGEM LOCAL

O relógio do Itaú da avenida Paulista diz para Marcelo Mirisola que ele é "um cara triste e solitário às cinco da manhã". Na rua Augusta, o personagem de Tony Monti chora sem parar durante um filme cabeça no Espaço Unibanco, ainda que o projetor permaneça desligado e na tela não passe nada.
É essa a São Paulo que hoje completa 453 anos descrita por dois de seus bardos.
No shopping Iguatemi e no salão Jacques Janine, pináculos do consumo paulistano, a menina descrita por Luiz Ruffato se delicia ao ser bancada por um homem com quem saiu para fazer programa.
Usando uma trouxa como travesseiro para observar melhor o movimento, o mendigo de Bruno Zeni assiste, às 23h, no cruzamento das avenidas Brasil e Rebouças, à maré dos carros e às imagens multicoloridas do telão da esquina.
A gostosa e frígida Mariana retratada por Reinaldo Moraes vê no namorado que tem um Audi A4 a chance de poder morar na Vila Nova Conceição e sair do bairro do Ipiranga para "proclamar sua independência da classe média de São Paulo".
Mariana é mais apegada à cidade do que o seu autor. Reinaldo Moraes já freqüentou o Mercearia, bar da Vila Madalena que abriga lançamentos de livros e tertúlias informais com escritores conhecidos, e ambientou ali "Privada", ótimo retrato de alguns habitués da "Vila Madá". Também já cruzou a cidade a pé, para uma reportagem para a revista "National Geographic", nos 450 anos da capital. Mas respondeu à Folha, quando questionado se moraria em outro lugar, que sim, porque "São Paulo é a coisa mais descartável que tem".
E não sentiria falta de nada? "Sim, de dois ou três amigos."
De qualquer forma, São Paulo é o cenário das 48 horas em que se passam o romance que Moraes está escrevendo.

O último do Marinelli
Tony Monti não cogita sair daqui. São Paulo é o lugar da pluralidade: "Gosto de mudar o tempo todo. Aqui, dá para mudar e continuar na cidade. Ela acolhe bem o diferente."
A cidade acolhe as diferenças e faz galhofa com elas. No conto "Duzentos e Dezessete", Monti inventa um cineasta chamado Marinelli para ironizar a intelectualidade paulistana. Sala cheia, o projetor não liga, e a tela segue escura, mas não importa. Os espectadores esperavam tão afoitamente pelo "último do Marinelli" que se comovem da mesma forma. "O casal à minha esquerda estava destruído em lágrimas. Vez ou outra, escutei soluços na sala, suspiros, respirações descontroladas".
No final do filme, o protagonista é consolado por dois casais. "Devia faltar bem pouco para o filme acabar quando o rapaz do casal à minha esquerda, vendo que eu chorava sem parar, ofereceu a companhia das suas e das mãos de sua namorada. Sorri e aceitei. O casal à minha direita notou o gesto e se comoveu. Ofereceu também as mãos. Aceitei, ainda que isso tenha me levado a uma posição desconfortável".

Irritado, irritadiço
Em "Eles Eram Muitos Cavalos", Luiz Ruffato explora parte da cartografia paulistana, com ruas e bairros que mesmo quem é de fora conhece.
Mas os retratados são menos os freqüentadores dos circuitos culturais e mais o torcedor vendo latas de cervejas voarem no pescoço alheio no jogo do Corinthians contra o Rosário Central pela Libertadores da América; o deputado que promove orgias; o taxista que conta a vida inteira das filhas para o passageiro; o índio que, bêbado no Jardim Varginha, começa a dançar no meio da rua.
"O bicho entusiasmou, arrancou a roupa sob aplausos do povaréu e ficou balançando os negócios, crianças e mulheres passando, uma esbórnia. Até que alguém, sempre um desmancha-prazeres, convocou a polícia. Veio a Rota, sirene esgoelando, pneus solfejando, os peemes desceram distribuindo sarrafo sem piedade nem dó, e o povinho ralo, sebo nas canelas, sumiu num trovoar, os deixa-disso quisemos explicar que aquilo era índio, índio mesmo."
A Folha perguntou aos escritores o que achavam patético na cidade. "O enorme contraste entre a fragilidade das pessoas e a dimensão colossal das estruturas urbanas concretas, o aparato de segurança particular e a falsa idéia de um paraíso gastronômico", enumerou, entre outras coisas, Bruno Zeni. "O ritmo alucinante da cidade, contrastado com a inércia do trânsito", elegeu Tony Monti. "Aquele paulistano que é irritado, irritadiço, irritável", fuzilou Reinaldo Moraes.


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