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FERNANDO GABEIRA
O Rio à espera de redenção
Andar pelo Rio no sol de
outono nos faz dizer: "Como
é linda a cidade". Mas como dói,
de certa maneira, ver o que fizemos dela nos últimos anos.
Faz tempo que tento explicar
como chegamos a isso. Nada de
científico, admito. Apenas um
modo de atenuar a dor. Para
muitos, a decadência do Rio se
expressa na onda de violência.
Mas prefiro vê-la de uma forma
mais ampla.
Comecei a sentir pela paisagem,
pelas águas. Deixamos que o mar
se poluísse de uma forma quase
irreversível. Quando vemos nossos filhos com a prancha debaixo
do braço, chegamos a desejar que
a água esteja fria. Assim serão
forçados a usar roupa de borracha, o que pelo menos dá a ilusão
de risco menor de hepatite.
Essa lenta degradação tem muito a ver com a maneira como a cidade cresceu e com o seu principal beneficiário: a especulação
imobiliária. A incapacidade de
compreender o valor das praias
para a cidade, não só para um lazer democrático, mas para a produção de divisas com o turismo, é
algo que, em si, me levaria a uma
pesquisa autônoma e dolorosa.
Mas o que, a meu ver, se articula com a onda de violência é a falta de cuidado, a facilidade com
que a cidade convive com a sujeira. O Rio tem o recorde mundial
do lixo produzido nas vias públicas: 40% do total. Só para ter uma
idéia, uma das principais vias do
centro, a avenida Rio Branco, é
varrida dez vezes por dia.
Nos filmetes produzidos pela
Comlurb, a empresa encarregada
da limpeza urbana, alguns cidadãos aparecem dizendo para os
garis: "Nós sujamos porque vocês
são pagos para limpar".
Esse contexto não produz violência em si. Mas é um dínamo.
Na base daquela teoria do tolerância zero havia algo de interessante: a afirmação de que uma vidraça quebrada não consertada
sempre é um convite para que se
quebre uma outra ao lado.
Ao longo destes anos foram várias as políticas equivocadas: sociais, de habitação, de segurança.
Os garotos mergulhando fundo
no tráfico de drogas, único modo
não só de consumir, mas de adquirir o respeito que os produtos
de marca atraem para seus donos
numa sociedade de consumo.
Já os visitei algumas vezes na
prisão. Quase todos de cabeça
raspada, short e Havaianas. Passam quatro, cinco anos na barbárie das cadeias e saem ressentidos
e prontos para novos e mais violentos embates.
Como explicar, diante de tantos
descaminhos, a emoção que sentimos quando o avião se aproxima? O que Tom Jobim disse nos
versos, "Minha alma canta/Vejo
o Rio de Janeiro", é uma verdade
para milhões de nós. Não importa
onde tenhamos nascido, somos
milhões que também achamos
que é esse o nosso lugar no mundo, que não há outro, por mais ferido que esteja.
A grande alquimia será transformar esse amor numa rede
construtiva que consiga virar o
jogo. Algo do tipo "Amo o Rio",
sem aquele coraçãozinho que
Milton Gleiser desenhou para Nova York.
Existem alguns fios de esperança. Não há espaço para falar de
todos, mas existem. Cidades nascem, crescem e decaem. Janet Jacobs escreveu um belo livro sobre
a decadência das grandes cidades. Mas elas também, de uma
certa forma, podem renascer.
Bagdá, por exemplo, foi bombardeada por forças estrangeiras,
ficou sem água e luz, hospitais e
museus contendo sua história foram pilhados, as ruas tomadas
por saqueadores.
Do caos mais desesperado surgiu uma força política moral tentando soerguê-la, os xiitas, e, aos
poucos, conseguiram pelo menos
acender a esperança. Isso independe de concordar ou não com
os xiitas. É apenas um estímulo
para pensar. O Rio tentou renascer várias vezes, através de passeatas com gente de branco pelas ruas. Essa tentativa repetiu-se em
Medellín, onde os resultados foram melhores para a sociedade.
Ninguém acredita mais em passeatas de branco. O problema
central, talvez, seja criar um conselho urbano com capacidade de
monitorar a polícia na sua ação e
na sua interface com órgãos federais. E monitorar como se gasta o
dinheiro para a despoluição da
baía de Guanabara, já que se trata de um dos maiores projetos
ambientais da história, embora
não tenha tido resultados visíveis.
Um conselho que lançasse luz
nos erros mais grosseiros. Um
professor, por exemplo, foi assassinado na porta de sua casa após
ter sido assaltado nove vezes no
mesmo lugar. É o máximo da incapacidade de prever possíveis
consequências a partir dos dados
policiais. Cinquenta homens armados em alguns pontos da cidade saem à noite para incendiar ônibus. Não são detectados. Em
que grande cidade do mundo 50
homens armados deslocam-se,
destroem e desaparecem sem que
sejam localizados?
Por mais divergências que existam entre nós, é possível achar
um denominador comum para
conter o processo. É preciso um
conselho capaz também de dialogar, criticamente, com a imprensa. Em que lugar do mundo há o custo-benefício de uma ação armada, como no Rio? Em que lugar do mundo você sai à noite com alguém na garupa da moto,
quebra uma vitrine ou lança uma bomba caseira e alcança as manchetes dos jornais e da TV?
Sou pela publicação de tudo. É um princípio. No entanto aprendi, desde menino nesse meio, que os editores, com suas escolhas,
têm uma enorme influência. Do ponto de vista comercial imediato, explorar o instinto de manada rende mais dividendos. Do ponto
de vista estratégico, analisar friamente os fatos aciona mecanismos racionais de autodefesa.
Exemplo de como não se fazem
as coisas nos dão os políticos convencionais. Dois juízes importantes são mortos porque estavam
sem segurança no momento do
crime. Em vez de de garantir o
dispositivo adequado de segurança, os políticos aprovam um projeto que aumenta a pena daqueles que matam uma autoridade
de 30 para 40 anos.
Isso supõe que o assassino vai
hesitar diante da morte de uma
autoridade porque cumprirá
mais dez anos. A mesma lógica levada às suas consequências o levaria a matar sem grandes dúvidas o taxista, a doméstica, o garçom que cruzarem seu caminho.
Os programas sensacionalistas
de rádio e TV, políticos campeões
de voto fácil, editores competindo
para vender mais, enfim, toda essa cultura do ódio e do enfrentamento terá de evoluir lentamente.
É um trabalho gigantesco. Vale a
pena, se pensarmos no resultado,
uma cidade maravilhosa, dentro
dos limites, é claro, da precária
condição humana.
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