UOL


São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO GABEIRA

O Rio à espera de redenção

Andar pelo Rio no sol de outono nos faz dizer: "Como é linda a cidade". Mas como dói, de certa maneira, ver o que fizemos dela nos últimos anos.
Faz tempo que tento explicar como chegamos a isso. Nada de científico, admito. Apenas um modo de atenuar a dor. Para muitos, a decadência do Rio se expressa na onda de violência. Mas prefiro vê-la de uma forma mais ampla.
Comecei a sentir pela paisagem, pelas águas. Deixamos que o mar se poluísse de uma forma quase irreversível. Quando vemos nossos filhos com a prancha debaixo do braço, chegamos a desejar que a água esteja fria. Assim serão forçados a usar roupa de borracha, o que pelo menos dá a ilusão de risco menor de hepatite.
Essa lenta degradação tem muito a ver com a maneira como a cidade cresceu e com o seu principal beneficiário: a especulação imobiliária. A incapacidade de compreender o valor das praias para a cidade, não só para um lazer democrático, mas para a produção de divisas com o turismo, é algo que, em si, me levaria a uma pesquisa autônoma e dolorosa.
Mas o que, a meu ver, se articula com a onda de violência é a falta de cuidado, a facilidade com que a cidade convive com a sujeira. O Rio tem o recorde mundial do lixo produzido nas vias públicas: 40% do total. Só para ter uma idéia, uma das principais vias do centro, a avenida Rio Branco, é varrida dez vezes por dia.
Nos filmetes produzidos pela Comlurb, a empresa encarregada da limpeza urbana, alguns cidadãos aparecem dizendo para os garis: "Nós sujamos porque vocês são pagos para limpar".
Esse contexto não produz violência em si. Mas é um dínamo. Na base daquela teoria do tolerância zero havia algo de interessante: a afirmação de que uma vidraça quebrada não consertada sempre é um convite para que se quebre uma outra ao lado.
Ao longo destes anos foram várias as políticas equivocadas: sociais, de habitação, de segurança. Os garotos mergulhando fundo no tráfico de drogas, único modo não só de consumir, mas de adquirir o respeito que os produtos de marca atraem para seus donos numa sociedade de consumo.
Já os visitei algumas vezes na prisão. Quase todos de cabeça raspada, short e Havaianas. Passam quatro, cinco anos na barbárie das cadeias e saem ressentidos e prontos para novos e mais violentos embates.
Como explicar, diante de tantos descaminhos, a emoção que sentimos quando o avião se aproxima? O que Tom Jobim disse nos versos, "Minha alma canta/Vejo o Rio de Janeiro", é uma verdade para milhões de nós. Não importa onde tenhamos nascido, somos milhões que também achamos que é esse o nosso lugar no mundo, que não há outro, por mais ferido que esteja.
A grande alquimia será transformar esse amor numa rede construtiva que consiga virar o jogo. Algo do tipo "Amo o Rio", sem aquele coraçãozinho que Milton Gleiser desenhou para Nova York.
Existem alguns fios de esperança. Não há espaço para falar de todos, mas existem. Cidades nascem, crescem e decaem. Janet Jacobs escreveu um belo livro sobre a decadência das grandes cidades. Mas elas também, de uma certa forma, podem renascer.
Bagdá, por exemplo, foi bombardeada por forças estrangeiras, ficou sem água e luz, hospitais e museus contendo sua história foram pilhados, as ruas tomadas por saqueadores.
Do caos mais desesperado surgiu uma força política moral tentando soerguê-la, os xiitas, e, aos poucos, conseguiram pelo menos acender a esperança. Isso independe de concordar ou não com os xiitas. É apenas um estímulo para pensar. O Rio tentou renascer várias vezes, através de passeatas com gente de branco pelas ruas. Essa tentativa repetiu-se em Medellín, onde os resultados foram melhores para a sociedade.
Ninguém acredita mais em passeatas de branco. O problema central, talvez, seja criar um conselho urbano com capacidade de monitorar a polícia na sua ação e na sua interface com órgãos federais. E monitorar como se gasta o dinheiro para a despoluição da baía de Guanabara, já que se trata de um dos maiores projetos ambientais da história, embora não tenha tido resultados visíveis.
Um conselho que lançasse luz nos erros mais grosseiros. Um professor, por exemplo, foi assassinado na porta de sua casa após ter sido assaltado nove vezes no mesmo lugar. É o máximo da incapacidade de prever possíveis consequências a partir dos dados policiais. Cinquenta homens armados em alguns pontos da cidade saem à noite para incendiar ônibus. Não são detectados. Em que grande cidade do mundo 50 homens armados deslocam-se, destroem e desaparecem sem que sejam localizados?
Por mais divergências que existam entre nós, é possível achar um denominador comum para conter o processo. É preciso um conselho capaz também de dialogar, criticamente, com a imprensa. Em que lugar do mundo há o custo-benefício de uma ação armada, como no Rio? Em que lugar do mundo você sai à noite com alguém na garupa da moto, quebra uma vitrine ou lança uma bomba caseira e alcança as manchetes dos jornais e da TV?
Sou pela publicação de tudo. É um princípio. No entanto aprendi, desde menino nesse meio, que os editores, com suas escolhas, têm uma enorme influência. Do ponto de vista comercial imediato, explorar o instinto de manada rende mais dividendos. Do ponto de vista estratégico, analisar friamente os fatos aciona mecanismos racionais de autodefesa.
Exemplo de como não se fazem as coisas nos dão os políticos convencionais. Dois juízes importantes são mortos porque estavam sem segurança no momento do crime. Em vez de de garantir o dispositivo adequado de segurança, os políticos aprovam um projeto que aumenta a pena daqueles que matam uma autoridade de 30 para 40 anos.
Isso supõe que o assassino vai hesitar diante da morte de uma autoridade porque cumprirá mais dez anos. A mesma lógica levada às suas consequências o levaria a matar sem grandes dúvidas o taxista, a doméstica, o garçom que cruzarem seu caminho.
Os programas sensacionalistas de rádio e TV, políticos campeões de voto fácil, editores competindo para vender mais, enfim, toda essa cultura do ódio e do enfrentamento terá de evoluir lentamente. É um trabalho gigantesco. Vale a pena, se pensarmos no resultado, uma cidade maravilhosa, dentro dos limites, é claro, da precária condição humana.


Texto Anterior: Tempo quase pára na asa-delta
Próximo Texto: Panorâmica - Transatlântico: Apartamento a bordo custa mais de US$ 2 milhões
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.