São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 2005

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ARTIGO

Talento de Aleijadinho é unanimidade

ESPECIAL PARA A FOLHA

Mario de Andrade disse: "O Brasil deu nele seu maior engenho artístico, creio eu. Uma grande manifestação humana". E Lúcio Costa: "Os poucos arquitetos que têm estudado de verdade a nossa arquitetura do tempo colonial sabem o quanto é difícil - por forçada- a adaptação dos motivos por ele criados. E isso porque Aleijadinho nunca esteve de acordo com o espírito da nossa arquitetura. A nossa arquitetura é robusta, forte, maciça, tudo que ele fez foi magro, delicado, fino, quase medalha. A nossa arquitetura é de linhas calmas, tranqüilas, e tudo que ele deixou é torturado e nervoso".
Mas Mario sentenciou: "Me espanta, mas é muito ver a sinceridade mesquinha com que historiadores e poetas depreciam o mulato". Falar de Antônio Francisco Lisboa, o genial artista, e de sua enorme produção como arquiteto, entalhador e escultor em madeira ou em pedra-sabão, das muitas portadas, e dos extraordinários lavabos da Ordem Terceira de São Francisco e de Nossa Senhora do Carmo, são suas obras as mais eruditas, que Mario de Andrade se irrita quando lhe chamam de primitivo, e ele responde: "Primitivo por que? Em relação a que...?".


"Sobre Aleijadinho, é incompreensível que ainda se fale das ferramentas amarradas em suas mãos"

Sua pecha de Aleijadinho continua imperdoável, e é incompreensível que ainda hoje se fale com destemido favor de suas ferramentas amarradas em suas mãos sem dedos. Qualquer pessoa sabe da impossibilidade de esculpir ou de manusear alguma ferramenta sem os dedos das mãos. Vendo a grande obra final de sua vida, a "Via Sacra" de Congonhas, já do início do século 19, com unidade formal e inteireza estilística nos panejamentos, os detalhes da expressão facial, seria impossível para um homem incapacitado, como está registrado, mesmo genial como Antônio Francisco Lisboa, essa proeza folclórica de creditar-lhe um heroísmo ambíguo típico da nossa pobreza.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi em sua formação um órgão criado e idealizado para descentralizar políticas públicas nacionais por meio de organismos regionais, responsável pelo tombamento, devido à importância histórica dos bens móveis e imóveis. Também teve uma enorme importância na formação de técnicos, em marcenaria, entalhadores, pintores, pesquisadores, restauradores de pintura e de esculturas, douradores, uma formação técnica importantíssima para a época e até de certa maneira pioneira. Pioneiras também foram suas publicações e revistas desde 1937.

"Athayde também foi inovador, luminoso, sensível, inseriu nos tetos a representação de mestiços"

Contudo o serviço público caiu em desgraça no país, e não se renovaram velhos conceitos desses tombamentos e desses técnicos, que foram desaparecendo sem substituição e formação sistemática. O certo é que o país emburreceu, emprobeceu e inchou, e esse enorme patrimônio tende aos poucos a desaparecer pela incúria administrativa do serviço público e assim assistimos à degradação dos monumentos históricos não só em Minas, Bahia e Pernambuco; quando não é incêndio, o cupim se incumbe da devastação silenciosa. Em compensação, prosaicamente, se tomba o acarajé, sem sequer saber se ele é feito de farinha de mandioca, de feijão-fradinho, se moído na pedra ou no liquidificador.

Athayde, também luminoso
Mas também Athayde foi um inovador, foi luminoso, foi sensível e genial. Ele soube com maestria inserir nos seus tetos a representação dos seus filhos mestiços como anjos, como músicos, e sua concubina negra, a mãe de seus filhos, Nossa Senhora da Porciúncula, na pintura do teto da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto -uma ordem religiosa branca. A grandiosidade de sua perspectiva ilusionista flui como desenho, desses florões e "rocailles" em vermelhos e azuis que se organizam no espaço com a graciosidade de um decorador delicado, livre e sensual. De Athayde é a idéia decorativa dos lambris laterais, pintados à maneira de azulejos portugueses, que ele transformou em solução de pura brasilidade.
O magistral Athayde pintou outros tetos e encarnou esculturas de Antônio Francisco Lisboa da grande "Via Sacra" de Congonhas do Campo, mas, talvez, sua grande pintura seja ainda a "Ceia do Caraça", o ponto máximo da pintura mineira: com sua composição simétrica e seus claros e escuros das figuras hierárquicas centradas em torno da mesa da ceia do Senhor em contraponto às figuras laterais em movimento e a mesma palheta refinada e de desenho expressionista. (EMANOEL ARAÚJO)

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