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São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Mísseis perdidos na terceira via

"Para salvá-los , temos de destruí-los." A frase de um general norte-americano no Vietnã deve ter sido entendida no mercado de Bagdá, atacado na semana passada. Quinze pessoas morreram, 500 ficaram feridas.
Ao mencionar as mortes de britânicos e norte-americanos no Iraque, Tony Blair disse ao Parlamento que aquilo era da natureza da guerra. Pena que não tenha elaborado essa frase.
Muitos soldados morreram sob o "friendly fire". A natureza da guerra é matar os que consideramos inimigos e, acidentalmente, os nossos amigos. A natureza da guerra é matar civis que vão comprar verduras e recebem mísseis.
Milhões se opunham à guerra porque, entre outras coisas, previam a carnificina. O guerreiro Blair sabia disso antecipadamente. E escolheu esse caminho.
Como se chega, na cabeça humana, a essa contradição de destruir para salvar? Pensadores políticos como Isaiah Berlin oferecem uma boa indicação. Tudo começa com uma idéia rígida de como deve ser o mundo e de como devem se comportar as pessoas. Em seguida, parte-se para conformá-los, para que se salvem de serem diferentes daquilo que gostaríamos que fossem.
O princípio da autodeterminação dos povos foi uma espécie de defesa que a humanidade encontrou contra as tentações delirantes da esquerda e da direita. A invasão da então Tchecoslováquia, em 1968, revelou o equívoco de tentar impor o socialismo na ponta das baionetas. Mais que uma defesa, o princípio da autodeterminação dos povos é um patamar da sabedoria humana.
Por mais que os iraquianos rejeitem o regime de Saddam Hussein, dificilmente vão se encantar com um regime salvador que explode supermercados, mutila crianças e desaloja famílias amedrontadas. Se o caminho fosse ajudar o Iraque a se transformar, respeitando seus ritmos internos, a maior ajuda seria um trabalho de inspeção seguro e continuado. Achando ou não armas químicas, esse diálogo entre a ONU e o Iraque acabaria trazendo mais segurança coletiva.
Para reencontrar o diálogo com o povo iraquiano, a ONU precisaria fazer um exame sincero do que representou o embargo econômico. Basta analisar a reação de Madeleine Albright, que admitiu a morte de 1 milhão de crianças afirmando que a causa era justa. Um dia isso terá de ser explicado na história da ONU. Principalmente porque, 12 anos depois, chegou a guerra. O que sofreram as crianças e as mulheres grávidas foi uma tragédia escondida dos olhos ocidentais.
A denúncia de que os americanos usaram urânio empobrecido dentro de projéteis na Guerra do Golfo jamais foi avaliada em detalhes. Os iraquianos foram submetidos a duas provações: bloqueio econômico e radiatividade.
"Thank you , I love you, don't kill me." (Obrigado, eu te amo, não me mate.) Essa frase que um iraquiano pôs na sua bandeira branca, ao se render para as tropas de ocupação, no fundo expressa o que os iraquianos podem dizer para o mundo depois da ocupação. Eles teriam apenas trocado o pavor pela ditadura de Saddam pelo choque e o pavor aos anglo-americanos.
O fato de Bush não ter percebido isso pode ser explicado de alguma forma: pelo desejo de vingar o pai ou por se sentir destinatário de uma tarefa divina.
Blair é líder de um partido muito mais sofisticado politicamente do que o Partido Republicano. Encarnava uma terceira via, nunca soubemos exatamente para onde, mas com grande prestígio entre os intelectuais .
Como foi possível, depois de remodelar um partido, derrotar os conservadores e lançar um dos programas energéticos mais avançados do mundo, escorregar e cair num terreno político empapado de sangue?
Essa guerra vai ser um psicodrama universal. O destino de Blair será uma das coisas menos interessantes nesse carrossel em que entramos com ansiedade, por pressentir que vamos sair sabendo alguma coisa a mais, ao mesmo tempo em que temos medo do que vamos saber.
"Não se passa um dia sem que haja algo acrescido ao nosso saber. Desde que suportemos as dores." Samuel Beckett.

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