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FERNANDO GABEIRA
Mísseis perdidos na terceira via
"Para salvá-los , temos
de destruí-los." A frase de
um general norte-americano no
Vietnã deve ter sido entendida no
mercado de Bagdá, atacado na
semana passada. Quinze pessoas
morreram, 500 ficaram feridas.
Ao mencionar as mortes de britânicos e norte-americanos no
Iraque, Tony Blair disse ao Parlamento que aquilo era da natureza da guerra. Pena que não tenha
elaborado essa frase.
Muitos soldados morreram sob
o "friendly fire". A natureza da
guerra é matar os que consideramos inimigos e, acidentalmente,
os nossos amigos. A natureza da
guerra é matar civis que vão comprar verduras e recebem mísseis.
Milhões se opunham à guerra
porque, entre outras coisas, previam a carnificina. O guerreiro
Blair sabia disso antecipadamente. E escolheu esse caminho.
Como se chega, na cabeça humana, a essa contradição de destruir para salvar? Pensadores políticos como Isaiah Berlin oferecem uma boa indicação. Tudo começa com uma idéia rígida de como deve ser o mundo e de como
devem se comportar as pessoas.
Em seguida, parte-se para conformá-los, para que se salvem de serem diferentes daquilo que gostaríamos que fossem.
O princípio da autodeterminação dos povos foi uma espécie de
defesa que a humanidade encontrou contra as tentações delirantes da esquerda e da direita. A invasão da então Tchecoslováquia,
em 1968, revelou o equívoco de
tentar impor o socialismo na ponta das baionetas. Mais que uma
defesa, o princípio da autodeterminação dos povos é um patamar
da sabedoria humana.
Por mais que os iraquianos rejeitem o regime de Saddam Hussein, dificilmente vão se encantar
com um regime salvador que explode supermercados, mutila
crianças e desaloja famílias amedrontadas. Se o caminho fosse
ajudar o Iraque a se transformar,
respeitando seus ritmos internos,
a maior ajuda seria um trabalho
de inspeção seguro e continuado.
Achando ou não armas químicas,
esse diálogo entre a ONU e o Iraque acabaria trazendo mais segurança coletiva.
Para reencontrar o diálogo com
o povo iraquiano, a ONU precisaria fazer um exame sincero do
que representou o embargo econômico. Basta analisar a reação
de Madeleine Albright, que admitiu a morte de 1 milhão de crianças afirmando que a causa era
justa. Um dia isso terá de ser explicado na história da ONU. Principalmente porque, 12 anos depois, chegou a guerra. O que sofreram as crianças e as mulheres
grávidas foi uma tragédia escondida dos olhos ocidentais.
A denúncia de que os americanos usaram urânio empobrecido
dentro de projéteis na Guerra do
Golfo jamais foi avaliada em detalhes. Os iraquianos foram submetidos a duas provações: bloqueio econômico e radiatividade.
"Thank you , I love you, don't
kill me." (Obrigado, eu te amo,
não me mate.) Essa frase que um
iraquiano pôs na sua bandeira
branca, ao se render para as tropas de ocupação, no fundo expressa o que os iraquianos podem
dizer para o mundo depois da
ocupação. Eles teriam apenas trocado o pavor pela ditadura de
Saddam pelo choque e o pavor
aos anglo-americanos.
O fato de Bush não ter percebido isso pode ser explicado de alguma forma: pelo desejo de vingar o pai ou por se sentir destinatário de uma tarefa divina.
Blair é líder de um partido muito mais sofisticado politicamente
do que o Partido Republicano.
Encarnava uma terceira via,
nunca soubemos exatamente para onde, mas com grande prestígio entre os intelectuais .
Como foi possível, depois de remodelar um partido, derrotar os
conservadores e lançar um dos
programas energéticos mais
avançados do mundo, escorregar
e cair num terreno político empapado de sangue?
Essa guerra vai ser um psicodrama universal. O destino de
Blair será uma das coisas menos
interessantes nesse carrossel em
que entramos com ansiedade, por
pressentir que vamos sair sabendo alguma coisa a mais, ao mesmo tempo em que temos medo do
que vamos saber.
"Não se passa um dia sem que
haja algo acrescido ao nosso saber. Desde que suportemos as dores." Samuel Beckett.
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