São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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O bordel nosso de cada dia


Gabriela Duarte, a Justine da novela "Esperança"



A fantasia dá o tom, e o realismo fica em segundo plano nas casas de prostituição das novelas, onde a vida é sempre fácil


FERNANDA DANNEMANN
FREE LANCE PARA A FOLHA

NA SÃO Paulo dos anos 30, um cabaré francês incrementa a trama de "Esperança" (Globo), trazendo à novela ares do filme "Moulin Rouge -Amor em Vermelho", de Baz Luhrmann (2001). "O tom cinematográfico é coisa do Luiz Fernando [Carvalho, diretor]", diz o autor, Benedito Ruy Barbosa, que criou um bordel urbano e sofisticado. "Talvez outro autor desse o papel para uma atriz mais velha, mas acho que o Benedito quis fugir do lugar-comum", diz Gabriela Duarte, intérprete de Justine, a dona do estabelecimento. "O bordel dá uma chacoalhada na novela, né? A liberdade e a ousadia daquelas mulheres mexem com a fantasia das pessoas", diz ela. "Eu não queria fazer um daqueles bordéis do Jorge Amado, que já foram mostrados em tantas novelas", afirma Benedito, referindo-se, inclusive, à sua "O Rei do Gado" (96/97), em que a atriz Fernanda Montenegro vivia uma cafetina. "A Fernanda me diz que até hoje é chamada de Jacutinga na rua", conta Benedito. O mesmo acontece com Luiza Tomé, que mais de um ano depois do fim de "Porto dos Milagres" (2001), também da Globo, ainda é chamada pelo nome da cafetina que interpretou na história. "As pessoas me olham e dizem "meu Deus, a Rosa Palmeirão!'", afirma ela. "Quando o bordel entrou em cena, a audiência subiu. Ouvi falar que aumentaram o espaço do núcleo por causa disso", relembra.

Malícia
Chamarizes de público, e considerados fundamentais em novelas rurais, os núcleos dos bordéis, segundo os autores, só cabem no horário nobre e são motivados pela fantasia. Agnaldo Silva, por exemplo, acredita que o segredo do sucesso é brincar com a malícia e a sensualidade. "Mas sem pesar a mão, né?", diz ele. "Não se pode simplesmente colocar um bando de mulheres gostosonas desfilando pra lá e pra cá. O bordel tem de ter bons personagens", afirma o autor de "Porto dos Milagres", cujo "rendez-vous" mostrava atrizes e modelos -como a ex-"Casa dos Artistas" Nana Gouveia- transitando de baby-doll.
"Foi mais ousado, sim", diz Agnaldo, referindo-se a "Porto". "O Marcos Paulo, diretor, falou pra fazer uma coisa bem sensual". Para Ricardo Linhares, co-autor da trama, o pedido da direção aumentou a popularidade da novela. "As roupas eram muito sensuais mesmo, o que foi uma novidade. Mas também tivemos a preocupação social de falar sobre camisinha. A Rosa Palmeirão sempre alertava as quengas, e na vida real isso não acontece", diz Linhares.
Segundo ele, porém, não há a preocupação de refletir a vida dura e triste das prostitutas. "O bordel é barra-pesada de pôr no ar, cabe mais em documentários. Em "Porto", ouvíamos comentários de que a vida delas era feliz. Na vida real, as quengas enfrentam clientes violentos, que não pagam ou que têm doenças", diz o autor.
Agnaldo não crê que a beleza das modelos e o clima alegre dos bordéis novelísticos possam fazer parte do público infanto-juvenil achar que a prostituição é uma boa profissão. "O bordel acaba sendo meio conto de fadas, pois na verdade ele não é daquele jeito, mas deveria ser. Acho que as pessoas gostam por causa dessa visão idealizada. Não me interessa fazer alguma coisa muito próxima da realidade", diz. Preocupado em não transmitir a idéia de que a vida num cabaré é fácil e cheia de glamour, Benedito Ruy Barbosa vê com restrições o excesso de sensualidade. "Muita gente é conservadora e se sente agredida. Além do mais, tem criança assistindo à novela", diz ele.

Exageros
Outra preocupação é fugir da caricatura. Para Renata Sorrah, a cafetina Zenilda de "A Indomada" (97), também escrita pela dupla Agnaldo/Linhares em parceria com Márcia Prates e Nelson Nadotti, isso é tão importante quanto abordar o aspecto social. "O papel da cafetina depende muito da visão das pessoas. A Zenilda dava casa, comida e proteção a moças que estavam morrendo de fome. Tem esse lado social", diz. E foi o realismo que delineou uma das mais marcantes cafetinas da TV brasileira: Maria Machadão, proprietária do Bataclã, de "Gabriela" (Globo, 75), vivida por Eloísa Mafalda. "O meu bordel foi o melhor de todos! Eu quis ser bem digna, não tinha decotão, não bebia nem fumava. Fui uma mãezona", diz ela, ao lembrar que sua maior dificuldade foi parecer gorda, para agradar ao diretor Walter Avancini. "Eu punha um sutiã que empurrava os seios pra cima e encolhia os ombros", recorda. No livro de Jorge Amado, Maria Machadão aparece em breves citações. Eloísa explica que, com a saída de Dina Sfat, que interpretava justamente uma prostituta -a Zarolha- Avancini percebeu que a história precisava de uma mulher forte. Outro exemplo de cafetina voluntariosa foi Matilde, de "Roque Santeiro" (Globo, 85/86), interpretada por Yoná Magalhães, que valoriza esse tipo de papel. "Essas mulheres são muito verdadeiras e humanas, e as pessoas se identificam", diz ela. "Fisicamente também é bom, elas estão sempre lindas e enfeitadas. Tem gente que diz que é cafona, mas eu gosto do excesso de bijuterias e dos brilhos. E é engraçado: vira moda", afirma. Para Linhares, o núcleo sempre funciona se não for tratado com realismo. Nossa intenção não é retratar a realidade. Na novela, as quengas são lindas e perfeitas; na vida real, são gordas e sem dentes". Para Eloísa Mafalda, fã de Benedito e do bordel francês, que a faz pensar em "Gabriela", esse ambiente cativa porque promove a curiosidade. Mas ela é categórica: "Puxo a brasa para a minha sardinha mesmo: meu Bataclã era diferente".



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