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CRÍTICA
A metamorfose
ARMANDO ANTENORE
POUCO ANTES de seguir para a Olimpíada
de Sydney, Galvão Bueno contou uma história
curiosa no "Programa do Jô". Há mais de 25
anos, ainda em início de carreira, precisou narrar uma partida de futebol entre duas seleções irrelevantes. Confesso que esqueci o nome das equipes. Imaginemos que se tratasse de Suíça e Andorra. Era, pelo menos,
o que anunciavam as fichas de Galvão.
Ele, animadíssimo, apresentou os oponentes -um
atleta de cada vez- e começou a transmissão. Às tantas,
tiro de meta contra a Suíça. Enquanto o
goleiro de Andorra se preparava para bater, as câmeras focalizaram o placar do
estádio, que atestava: Alemanha Oriental
0 x 0 Austrália. Galvão estava conduzindo outro jogo (seus papéis traziam informações erradas).
O locutor não hesitou. Mal viu o goleiro chutar a bola, emendou: "Lá vai a Austrália. Avança pela direita, corre para o
meio e esbaaarra na Alemanha". Sem
dar nenhum esclarecimento, Galvão corrigiu o nome das seleções e, malandramente, prosseguiu a narração.
Conhecido por muitos jornalistas que
cobrem esporte, o episódio denuncia de
modo hiperbólico uma das características mais peculiares do principal "speaker" brasileiro: o dom de se transfigurar
nas partidas -qualquer uma, não só as
de futebol. Galvão é capaz de metamorfoses impressionantes. Transforma-se
de água em vinho com a ligeireza dos prestidigitadores.
Pode agir mesmo como um mágico, o grande Houdini
da Rede Globo. Em vez de mãos e dedos leves, usa a voz
desvairada para iludir. Na história do jogo que não existia, fez o inverso: alterou o que narrava porque desejava
adequar o fato à versão do fato. Mas, em inúmeras outras
ocorrências, as transfigurações do locutor costumam servir somente à confusão. Modificando-se, Galvão também
muda a realidade que teria de retratar. Subverte-a, adapta
sons e imagens às vicissitudes dos truques.
O estranho fenômeno se deu, por exemplo, na madrugada da última terça-feira, em Bondi Beach, Sydney. Brasil e Estados Unidos disputavam a medalha de ouro no
vôlei de praia. De um lado, o paraibano Zé Marco e o
baiano Ricardo. Do lado oposto, o negro Blanton e o
branco Fonoimoana. Levaria o prêmio máximo quem faturasse dois dos três sets possíveis (cada set terminaria assim que um dos adversários atingisse 12 pontos).
Galvão abriu os trabalhos com o ufanismo habitual. "É
a Paraíba nas areias de Bondi Beach. É a Bahia..." A dupla
nordestina, campeã mundial, enfrentara o duo norte-americano em quatro ocasiões e vencera todas. Despontava, portanto, como favorita -prognóstico que o locutor não cansava de repetir.
Logo nos instantes iniciais da partida, Galvão revelou
para o comentarista Renan, ex-atleta olímpico e medalha
de prata em Los Angeles com a equipe de vôlei de quadra:
"Hoje é o dia. Estou sentindo". Sentir. Eis outra marca do
narrador. Ele sente, adivinha, profetiza, pressente. Crê no
sensorial, na natureza, a mesma que concebeu Zé Marco e
Ricardo à semelhança dos heróis. O relógio não marcava
nem cinco minutos de jogo, e Galvão já avisava: o dueto
do Brasil alcançaria a vitória por ser naturalmente superior. Nada de treino, tática, técnica, garra. A natureza, sobretudo a natureza, iria se encarregar de erigir o baiano e
o paraibano à glória.
Chovia. A bola escorregava, e a areia
molhada dificultava o deslocamento
dos competidores. Para apaziguar a
audiência, o locutor lançou a tese: os
Estados Unidos têm mais força; o Brasil tem mais jeito. Em condições adversas, o jeito sempre aniquila a força.
De fato, a dupla nordestina permaneceu quase todo o primeiro set na
frente. Empolgado, Galvão menosprezava "os gringos" -em especial,
Blanton. Chamava-o de inapto, de desonesto. "O Blanton gosta de perturbar. Reclama, catimba. Se vai à rede,
chuta por baixo, pisa no pé." Renan
assentia. Concordava, aliás, com qualquer frase do narrador. Galvão avistava o mar: "Deve estar fria a água". E
Renan: "Ô".
Acontece que, quando o Brasil dependia de apenas um ponto para fechar o set, as coisas inverteram, e os
norte-americanos tiraram a diferença: 12 a 11. Daí em
diante, o caldo desandou de vez. Os Estados Unidos lideraram o resto do jogo e abocanharam o ouro.
À medida que o fracasso se desenhava, o caráter camaleônico de Galvão ganhava corpo. O locutor se impacientava com os brasileiros. Não mencionava mais as teses
anteriores. Lamentava que Zé Marco e Ricardo se mostrassem tão amedrontados, que não respondessem às
provocações dos inimigos. "Só porque vestem a camisa
dos Estados Unidos? Para cima deles, gente! Mete a mão
na bola, e vamos para cima deles!" A metamorfose de
Galvão ia convertendo os heróis canarinhos em vira-latas
complexados -ainda que continuassem jogando de maneira parecida com a do primeiro set. "É o tal negócio, Renan. Falta tranquilidade. Falta controle emocional. Falta
aquela atitude vencedora." E Renan: "É, falta".
Depois da partida, entrevistados pelo repórter da Globo, Zé Marco e Ricardo rejeitaram as conjecturas do narrador. Não, não ficaram intranquilos. Não, não se acovardaram. Por que a derrota, então? "Porque aqui não existe
favoritismo. Qualquer dupla que chega à final pode vencer ou perder. Nós jogamos muito bem, mas eles jogaram
um pouquinho melhor." Simples assim.
E-mail: aluis@folhasp.com.br
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