São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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CRÍTICA

I belong to... pelo amor de Deus!

EUGÊNIO BUCCI

CREDO EM cruz! Ao final daquela partida lá, aquela tal de domingo passado em que o Brasil se sagrou campeão depois de ganhar da Alemanha, uns jogadores arrancaram a camiseta oficial da seleção brasileira e, por baixo, tinham outra. Sim, vestiam outra camisa por baixo da camisa que vestiam. E essa outra camisa era merchandising religioso. Uma delas trazia a seguinte mensagem: "I belong to Jesus". Oh, God. Eu me lembrei de Ella Fitzgerald cantando "my heart belongs to daddy", da música de Cole Porter, e senti que a voz da cantora era mais angelical. Um segundo futebolista, este mais alto, preferiu outros dizeres: "Jesus (coraçãozinho) you". Incredible! Qu'é qu'é isso, Cafuringa? Nos rescaldos da final de campeonato, a tela da Globo se converteu, de súbito, numa incomensurável tela da Rede Record. Aquilo virou um megaculto da Igreja Universal.
Há quem tenha visto espontaneidade na comemoração dos canarinhos. "É o jeito brasileiro", diziam os animadores esportivos de sempre. O que é exatamente o "jeito brasileiro"? Dizem que é o "improviso", a "descontração", a "alegria" que "éééééé.... duBrasil!" Tocaram lá a musiquinha que fazia fundo para as vitórias de Ayrton Senna na Fórmula 1. Tentaram esconder a figura insistente de Ricardo Teixeira, o dono da taça, enquanto o pessoal chorava. Tentaram em vão. Teixeira acabou dando entrevista em destaque e tudo virou um grande carnaval sem culpados. Vai ver que isso tudo junto é o "jeito brasileiro" de ser, mas há mais no meio da bagunça. Há algo que não tem nada de Brasil e que tem tudo de não-Brasil. Religiões eletrônicas, que se promovem pelos meios de comunicação de massa e que são fábricas do dinheiro de poucos e do gozo das multidões, são um fenômeno da indústria cultural em moldes americanos. São tão brasileiras quanto a Nike. O que aqueles atletas encenaram no meio do gramado não foi uma inocente expressão de fé (coisa que também não tem pátria, graças a Deus), mas uma descarada jogada de marketing. O que se manifestou no episódio não foi o Espírito Santo, mas uma propaganda diabólica.
Nós, brasileiros, já temos de suportar a marca de patrocinadores na camisa que deveria representar apenas uma nação. Já é um desaforo. Agora existe aí a modalidade da propaganda infiltrada. E parcial. Já que isso vale, por que propaganda só de Jesus? Por que não de Xangô? E por que não de Buda? Aqueles atletas que vestiram a camisa do Brasil tendo outra por baixo eram os homens-bomba do simbólico. Não levavam explosivos propriamente ditos, mas, disfarçados de futebolistas brasileiros, esconderam sua verdadeira camisa até o instante final, quando então "explodiram": eram propaganda contrabandeada. "I belong to Jesus", ora, por favor. E a gente aqui achando que o sujeito pertencesse ao time do Brasil, que ele representasse o país.
A fusão da religião com a TV é tão antidemocrática quanto a fusão entre Estado e Igreja. Transformado em espetáculo, o discurso religioso ensandece, invade as esferas individuais e ganha tons totalitários. É bem possível que os homens-bomba do simbólico pretendam que esse "Jesus" de suas camisetas seja unânime, total, compacto e que, portanto, jamais possa ser visto como "penetra" na festa de ninguém. Ai de quem for contra "Jesus", eles proclamam. E pronunciam o nome com força, com tanta força que a palavra soa estranha, soa "Xessôs", como se fosse nagô. Como se fosse a serenidade se transformando em fúria. O amor em ódio. A fé em fanatismo.
Enquanto isso, pobre de quem acreditava que o Estado fosse laico. Pobre de quem acreditava que a seleção brasileira representasse os brasileiros de todas as religiões. Pobre do torcedor. Esses propagandistas dissimulados. Na próxima Copa, que façam comercial do diabo de uma vez.


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