São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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ARTIGO - RÉPLICA

O ajuste permanente da TV Cultura

JORGE DA CUNHA LIMA

A TV Cultura, por meio de sua programação, fala por si mesma; o colunista da Folha Fernando de Barros e Silva também, só que fala dos outros. Aliás, alguns intelectuais, que desfrutam do privilégio de um espaço permanente, em jornal de grande circulação, transformaram-se numa derradeira instância do Poder Judiciário. Julgam, criticam, condenam, desmoralizam, sem que as pessoas e as instituições avaliadas tenham, na maioria das vezes, qualquer outro instrumento de agravo que a própria integridade.
Gostaria de saber em que programa atual da TV Cultura o colunista encontra qualquer laivo de vilipendiado neoliberalismo? Gostaria de saber em que minuto de nossa programação a Cultura "é uma obra de regresso, dá sua cota de contribuição ao estrangulamento dos espaços públicos"? como afirma Barros e Silva. Nas atrações mais polêmicas de nossa grade, o "Roda Viva" e o "Opinião Brasil", não deve ser, pois são os únicos programas radicalmente pluralistas da TV brasileira, tanto do ponto de vista do entrevistado quanto do entrevistador.
A programação infantil nem precisa de comentários. Os novos documentários, 31 em um ano em vez de dois, por sua dimensão humanística e social, acabam de receber o Prêmio Ibero-Americano de Televisão, galardão da Unesco. Quanto aos jovens, o segmento mais esquecido na TV mundial, trazer boas ficções australianas e acrescentar bandas brasileiras à pauta temática do "Turma da Cultura" não me parece nenhuma submissão à confraria do FMI.
Com relação ao telejornalismo, esclareço de vez: há dois anos perseguimos, em seminários internos, em discussões com os maiores técnicos nacionais e na prática do cotidiano, um jornalismo de TV pública. E estamos fazendo isso com 26 emissoras de todo o país. Um jornalismo voltado para os interesses da sociedade e não ditado por imposições políticas, ideológicas, econômicas ou mercadológicas dos editores. Lutamos contra a pauta e o formato do espetáculo da destruição em que se transformaram os noticiários dos jornais, revistas e TVs.
Televisão é um serviço que renova todos os dias mais de 60% do seu produto. Assim, a TV Cultura é um processo que renova todos os dias o que foi inovado anteriormente. Por isso mesmo independentemente de posicionamentos e divergências políticas, estéticas ou mesmo pessoais. Reconheço todo o trabalho notável de meus antecessores.
A Fundação Padre Anchieta foi concebida com um modelo jurídico exemplar, por Abreu Sodré: Fundação de Direito Privado, criada pelo Estado, que se comprometeu por lei a colaborar com seu custeio e manutenção, sem o direito de intervenção em sua liberdade intelectual e política, em sua gestão, o que se comprovou no tempo e até nos tribunais. Foi fundada para promover educação a distância, quando se acreditava que esse era todo o escopo da televisão educativa e quando o regime militar colocou esse bridão em seu código de comunicações.
Mas ser fiel ao público é sempre renovar. De educativa, a TV se tornou cultural. Soares Amora impôs o culto à linguagem. Roberto Muylaert entendeu que educação e cultura podiam ser feitos por intermédio do entretenimento, infantil ou adulto, e em horário nobre. Isso gerou audiência e reconhecimento.
Hoje perseguimos uma terceira etapa, nem apenas educativa, nem apenas cultural, mas de TV pública, aqui e em rede. Barros e Silva chama isso de neoliberalismo e traição. O fato é que vivemos três desafios: o empobrecimento do Estado e consequente diminuição de sua participação orçamentária, a necessidade de aumento sensível de produtividade em decorrência da estabilidade da moeda e dos novos processos produtivos e, por fim, o efeito danoso da popularização da TV comercial aberta que, na disputa feroz do mercado, nos tirou bons nacos de audiência.
Com relação a isso, todo mundo sabe que nos insurgimos contra a idéia da audiência universal, que quer todo mundo, o tempo todo, ao mesmo tempo, em frente à TV, sobretudo depois que 20 milhões de novos aparelhos foram acrescentados aos lares de classe C e D. Esse conceito produziu a desqualificação da programação das TVs comerciais, com algumas exceções, e culminou com a programação dos domingos.
Nós optamos pelo critério da qualidade, do universo de audiência, o que significa produzir o melhor para um segmento específico, nos patamares horizontais da grade. Queremos o mercado também, no que ele possa se confundir com sociedade. E estamos atentos à existência, para o bem ou para o mal, de uma sociedade publicitária, mas nunca ao preço da desqualificação que o articulista nos imputa com leviandade.
Não queira também o colunista conspurcar a amizade de boa parte da vida que mantenho com Fernando Henrique Cardoso, hoje presidente, como outrora foi um exilado. E não o faça, covardemente, num período em que o presidente atravessa um momento de infortunada queda no reconhecimento popular. O dom da amizade, felizmente, não se rege pelo Ibope ou por índices de pesquisas. Orgulho-me de ter aprendido isso em casa e na rua.
Nunca usei carteirinha alguma em minha vida intelectual e política, e mesmo meu catolicismo é mais fiel à etimologia do que aos dogmas, enquanto consagra o universal como ética e como estética. Conheço o preço de não pertencer a clubes ideológicos, econômicos ou mesmo intelectuais, num contexto corporativo e maniqueísta em que vivemos.
Não há nada mais público, Fernando de Barros e Silva, do que o exercício do jornalismo, apesar do subjetivismo narcisista da maioria dos que o praticam.
Presidente e jornalista, garanto ao público, que respeito, que na Fundação Padre Anchieta buscamos com força e humildade um aumento constante da produtividade, uma atualização tecnológica imprescindível (apesar dos poucos recursos) e a manutenção da alta qualidade da programação, em seu conteúdo e formato. Essa é a plataforma.
Exigir que editores e produtores busquem superar o traço, isto é, a audiência nenhuma, buscando para isso aprimorar a linguagem, a beleza e o ritmo dos programas, é um dever mínimo de administrador e não pode ser objeto do escárnio manifestado em tom professoral em sua coluna no TV Folha. É mesmo uma obrigação de quem cuida do que é público e ao público se destina.
Sabemos e proclamamos que o ritmo da TV comercial é o ritmo do mercado, e que o ritmo da TV pública é o ritmo da reflexão. E, quanto a essa certeza, não precisamos do sermão de ninguém em seu púlpito dominical, mesmo que seja um filósofo de TV.


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