São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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CRÍTICA

O padrão Record de qualidade

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Quantos desses astros populares estariam tão à vontade se exibindo no programa do Ratinho quanto fazendo as vezes de galã no dramalhão das oito da Globo, em casa tanto no Jardim Botânico quanto no SBT? Não muitos. Mas Fábio Jr. está entre eles, sem dúvida.
É hoje contratado da Record, onde comanda um programa bem popular, mas cheio de cuidados e veleidades "artísticas" -meio SBT, meio Globo.
Esqueça Fábio Jr. Pense agora em Boris Casoy. Já se disse que a respeitabilidade que conquistou fala tanto à classe média quanto ao povão. O seu bordão - "é uma vergonha"- traduz um tipo de demanda moralista e moralizante que atravessa fronteiras sociais e de certa forma está aquém delas. Meio Globo, meio SBT, Casoy também está na Record.
E a novela produzida na casa de Edir Macedo, "Louca Paixão"? É inominável como as do SBT, mas o par romântico e a inspiração também saíram da Globo. O mesmo se pode dizer do novo humorístico da emissora, "Escolinha do Barulho", rústico o suficiente para agradar o público de Silvio Santos e próximo demais de Chico Anysio para não evocar imediatamente a Globo.
Vistos simultaneamente, esses fenômenos sugerem algo como um estratagema concertado ou, para falar em termos globais, a gestação de um "padrão de qualidade", tal como a Globo consolidou nos anos 70 e que serviu como instrumento de coesão nacional sob o regime militar.
A questão é saber qual o chão histórico e o pano de fundo social desse confuso e embrionário "padrão Record de qualidade".
O pé na santa do pastor Von Helder, tão explorado pela emissora há poucos anos, não tem mais vez nesse novo padrão -e a saída forçada de Ratinho rumo ao SBT talvez tenha ajudado a precipitá-lo.
O reinado de Gilberto Barros como substituto de Ratinho durou pouco. Logo o "Leão Livre" foi aprisionado e hoje se vê domesticado, mais miando do que rugindo no fim de noite -parte da estratégia de extingui-lo aos poucos, sem traumas, educadamente.
Desde o seu surgimento agressiva e muito hostilizada, estigmatizada como veículo de uma seita marginal de vigaristas mercenários, a Record enfim percebeu que só poderia se livrar da marca de nascença imitando seu maior inimigo. Hoje, mais do que nunca, parece empenhada em exaltar valores da família, tão ao gosto do conservadorismo hegemônico da Globo, como se tivesse, ao contrário do SBT, algo a perder.
A Record vai expurgando da programação tudo que possa ser considerado nocivo, destoante, marginal, perverso, de mau gosto. Ela aplica a si mesma durante o dia o mesmo tratamento que receita aos fiéis ao longo da madrugada, quando exibe depoimentos de ex-drogados, ex-homossexuais, ex-alcoólatras e ex-desempregados e outros "ex" devidamente salvos pela conversão religiosa.
No caso da emissora, o "exorcismo" consiste paradoxalmente em introjetar o demônio (a Globo) e não mais em esconjurá-lo.
Cria e pulmão da Igreja Universal, a emissora caminha na direção da laicização de sua programação, adapta-se à lógica terrena do entretenimento de mercado para oxigenar o protestantismo popular que lhe deu origem.
A emissora adota para si própria o mesmo pragmatismo que está na base do crescimento espantoso da Igreja Universal e de seu êxito junto aos fiéis: salvação significa felicidade terrena e individual via acúmulo de bens e ascensão social.
O "padrão Record de qualidade" dispensa a ideologia difusamente nacional-popular contrabandeada da esquerda e posta a serviço do regime militar pela Globo. Fala diretamente à família, o último elo coletivo dos aflitos que esperam a conversão pelo mercado.

E-mail: fbsi@uol.com.br


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