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CRÍTICA
Sexo, mentiras e telenovela -1
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
A novela é uma instituição da família brasileira.
Venho dizendo há algum
tempo que ela -a novela, mas, pensando bem,
também a família brasileira- padece de um
imenso déficit de realidade. Está, por assim dizer,
fora do mundo, apesar
de sua quase sempre pretensão realista, alardeada
não só pela Globo, o que
é compreensível, mas
por muitos intelectuais e
críticos que insistem em
dizer que as novelas são
um retrato do Brasil, o
espelho antropológico da
nossa gente. O problema
das novelas não é que sejam, como também se diz
muito, banais ou estereotipadas. É muito pior.
A imagem ou a visão
que o brasileiro tem da
miséria, por exemplo, está a anos-luz de distância
da miséria brasileira como ela é. A novela é uma
das grandes, se não a
maior responsável por isso.
As pessoas vêem na tela
aqueles pobres remediados, cheios de calorias,
fazendo três refeições ao
dia, varrendo felizes o
seu jardinzinho, e acham
que aquilo são os pobres
de verdade -tão indefesos que chegam a dar dó
na gente. É gente humilde, como também se ouve muito por aí. Tenho
vontade de virar abóbora
cada vez que alguém diz
que tal fulano tem muito
valor, "veio de família
humilde".
São em geral as mesmas
pessoas que ignoram
uma miséria imensa e
real abaixo dessa que
"dá dó na gente" e que
nunca entrou na tela da
Globo. Ela não cabe na
dramaturgia dessa emissora. E não deve ser dos
menores êxitos da Globo
o de que consiga ter um
caso de amor com o Brasil escondendo o objeto
amado.
Caso de amor, aliás, é
um slogan feliz, porque
tudo que é novela da Globo termina em casório,
geralmente confundido
com comunhão ou redenção nacional. Não foi
assim em "O Rei do Gado"? Realismo com caso
de amor entre sem-terra
e latifundiário não é para
qualquer um.
E "Torre de Babel",
assunto de capa deste TV
Folha? Confesso que não
tenho acompanhado a
novela com a frequência
que deveria, mas arrisco
um par de palpites. Deixemos o sexo -lá no título- para o próximo
capítulo e comecemos
pelas mentiras, isto é, a
composição social e as
relações entre as classes
exploradas pela novela.
Como sempre, ou quase,
há também aqui o núcleo
dos ricos e o dos pobres.
O núcleo "famélico"
de "Torre de Babel" começou até que muito
bem: um pedreiro que
mata a mulher adúltera a
pauladas; o pai do pedreiro que faz uma filha
na mulher de seu filho; os
irmãos toscos que vivem
se engalfinhando por nada; um agregado abobalhado; uma filha vigarista
e pretensiosa que trabalha como garçonete; e, finalmente, a filha princesinha que nunca pode ser
princesa de verdade porque é manca.
Tudo isso ambientado
num ferro velho sombrio, sem retoques atenuantes, sem elementos
dramáticos ou cênicos
que pudessem fazer supor que aquilo foi ou poderia ser uma família feliz ou minimamente estruturada algum dia.
Gente pobre, feia, suja e
encrencada, em suma. A
fusão desses ingredientes, como disse uma amiga, prometia algo além
da pasmaceira habitual.
Mas era realismo demais. A operação "doçura", em parte pressionada pela audiência, em
parte por motivações internas à própria trama, já
foi deflagrada. A garçonete se arrumou com o
advogado cioso e milionário, filho do dono do
shopping onde ela trabalha e irmão exemplar de
um pilantra e de um infeliz drogado. O pedreiro-presidiário, por sua
vez, depois de uma estada de 20 anos num desses
infernos sobre a terra que
são as prisões brasileiras,
sai prometendo fazer justiça com as próprias
mãos, mas logo inicia um
caso de amor, devidamente correspondido,
com uma belíssima loira,
por sua vez agregada da
família proprietária do
shopping, da qual o pedreiro queria se vingar.
A simples enumeração
desses desdobramentos
dramáticos dispensa
maiores análises. Alguém
já viu advogado rico dos
Jardins enamorado de
uma garçonete "from
Parelheiros"? E um
egresso do Carandiru arrebatando o coração de
uma mocinha educada
na fina flor da sociedade?
Mas na Globo é assim. Há
uma fumaça sentimental,
uma tentação mexicana
que, depois de, num primeiro momento, subordinar conflitos de qualquer ordem a dramas de
amor, acaba por eliminá-los num final feliz
sempre previsível e sempre esperado.
É curioso e sintomático, diante dessas artimanhas novelescas à vista de
todos, essas sim realmente pornográficas,
que as pessoas estejam
preocupadas com o excesso de violência e cenas
de atentado ao pudor em
"Torre de Babel". Também nesse terreno, a novela continua devendo
muito à realidade que
pretende alcançar.
Volto ao assunto na
próxima semana.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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