São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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CRÍTICA
Sexo, mentiras e telenovela -1

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

A novela é uma instituição da família brasileira. Venho dizendo há algum tempo que ela -a novela, mas, pensando bem, também a família brasileira- padece de um imenso déficit de realidade. Está, por assim dizer, fora do mundo, apesar de sua quase sempre pretensão realista, alardeada não só pela Globo, o que é compreensível, mas por muitos intelectuais e críticos que insistem em dizer que as novelas são um retrato do Brasil, o espelho antropológico da nossa gente. O problema das novelas não é que sejam, como também se diz muito, banais ou estereotipadas. É muito pior.
A imagem ou a visão que o brasileiro tem da miséria, por exemplo, está a anos-luz de distância da miséria brasileira como ela é. A novela é uma das grandes, se não a maior responsável por isso.
As pessoas vêem na tela aqueles pobres remediados, cheios de calorias, fazendo três refeições ao dia, varrendo felizes o seu jardinzinho, e acham que aquilo são os pobres de verdade -tão indefesos que chegam a dar dó na gente. É gente humilde, como também se ouve muito por aí. Tenho vontade de virar abóbora cada vez que alguém diz que tal fulano tem muito valor, "veio de família humilde".
São em geral as mesmas pessoas que ignoram uma miséria imensa e real abaixo dessa que "dá dó na gente" e que nunca entrou na tela da Globo. Ela não cabe na dramaturgia dessa emissora. E não deve ser dos menores êxitos da Globo o de que consiga ter um caso de amor com o Brasil escondendo o objeto amado.
Caso de amor, aliás, é um slogan feliz, porque tudo que é novela da Globo termina em casório, geralmente confundido com comunhão ou redenção nacional. Não foi assim em "O Rei do Gado"? Realismo com caso de amor entre sem-terra e latifundiário não é para qualquer um.
E "Torre de Babel", assunto de capa deste TV Folha? Confesso que não tenho acompanhado a novela com a frequência que deveria, mas arrisco um par de palpites. Deixemos o sexo -lá no título- para o próximo capítulo e comecemos pelas mentiras, isto é, a composição social e as relações entre as classes exploradas pela novela. Como sempre, ou quase, há também aqui o núcleo dos ricos e o dos pobres.
O núcleo "famélico" de "Torre de Babel" começou até que muito bem: um pedreiro que mata a mulher adúltera a pauladas; o pai do pedreiro que faz uma filha na mulher de seu filho; os irmãos toscos que vivem se engalfinhando por nada; um agregado abobalhado; uma filha vigarista e pretensiosa que trabalha como garçonete; e, finalmente, a filha princesinha que nunca pode ser princesa de verdade porque é manca.
Tudo isso ambientado num ferro velho sombrio, sem retoques atenuantes, sem elementos dramáticos ou cênicos que pudessem fazer supor que aquilo foi ou poderia ser uma família feliz ou minimamente estruturada algum dia. Gente pobre, feia, suja e encrencada, em suma. A fusão desses ingredientes, como disse uma amiga, prometia algo além da pasmaceira habitual.
Mas era realismo demais. A operação "doçura", em parte pressionada pela audiência, em parte por motivações internas à própria trama, já foi deflagrada. A garçonete se arrumou com o advogado cioso e milionário, filho do dono do shopping onde ela trabalha e irmão exemplar de um pilantra e de um infeliz drogado. O pedreiro-presidiário, por sua vez, depois de uma estada de 20 anos num desses infernos sobre a terra que são as prisões brasileiras, sai prometendo fazer justiça com as próprias mãos, mas logo inicia um caso de amor, devidamente correspondido, com uma belíssima loira, por sua vez agregada da família proprietária do shopping, da qual o pedreiro queria se vingar.
A simples enumeração desses desdobramentos dramáticos dispensa maiores análises. Alguém já viu advogado rico dos Jardins enamorado de uma garçonete "from Parelheiros"? E um egresso do Carandiru arrebatando o coração de uma mocinha educada na fina flor da sociedade? Mas na Globo é assim. Há uma fumaça sentimental, uma tentação mexicana que, depois de, num primeiro momento, subordinar conflitos de qualquer ordem a dramas de amor, acaba por eliminá-los num final feliz sempre previsível e sempre esperado.
É curioso e sintomático, diante dessas artimanhas novelescas à vista de todos, essas sim realmente pornográficas, que as pessoas estejam preocupadas com o excesso de violência e cenas de atentado ao pudor em "Torre de Babel". Também nesse terreno, a novela continua devendo muito à realidade que pretende alcançar.
Volto ao assunto na próxima semana.


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