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CRÍTICA
O negro (no limite) e o branco (sem limite)
ARMANDO ANTENORE
FEZ-SE justiça, afinal. Marcus, o vilão de "No Limite", rapazola bem-nascido que cultiva sotaque carioca dos mais caricatos, está fora da disputa. Falastrão, chamou de crioulo um parceiro
de equipe, o negro Amendoim, ele também carioca e falastrão, mas de origem humilde, síntese de um Brasil que,
sem dinheiro ou colégio, vai se descolando como pode.
Pois Marcus pagou a língua atrevida. Virou alvo de comentários zombeteiros, amealhou 10 mil e tantos votos
no site Ovo Neles, sofreu ameaças de processo por racismo e acabou eliminado da competição
há uma semana. Cortaram-lhe a cabeça
sob as asas da lei -ou melhor, do regulamento que norteia o embate.
Dois grupos de seis pessoas se enfrentam em uma praia do Ceará. Suam, passam fome, improvisam abrigos com folhas de palmeira, atolam nas dunas de
areia. A equipe que perde determinadas
provas se reúne e dispensa um dos seus
integrantes. Amendoim, o singelo, já levara a pior no dia 30. Agora, sobrou para
Marcus, o impiedoso.
O Maracanã, lotado (são 43 pontos de
audiência), aplaudiu. Gozou a catarse
-tanto maior porque:
1) o programa cria situações que lembram tramas novelescas;
2) a edição das imagens tratou de realçar o lado sombrio de Marcus, suas gafes,
seus caprichos, suas contradições;
3) o olhar muitas vezes jornalístico das
câmeras dá a impressão de que, no vídeo, desfila a pura
verdade, o real.
De alma lavadinha, decido, então, autopsiar os cadáveres. E noto, seduzido pelo trocadilho, que Amendoim, 42
anos, casado, quatro filhos, morador da Rocinha, vive de
fato no limite. Oscila entre a exclusão social e o universo
diminuto dos incluídos. Marcus, 27 anos, garotão de
praia, boa-pinta, solteiro, engrossa a nata do Rio. Não sabe o que é exclusão. Tem de tudo, só não tem limites.
Criado pela avó, Amendoim não conheceu o pai e mal
pôde contar com a mãe, alcoólatra. Cresceu engraxando
sapatos e vendendo, claro, amendoins. Ainda criança, se
aproximou de um veterinário que vacinava cães da Rocinha. Um dia, o médico o levou para o Flamengo. O garoto
tentou, de início, o futebol. Saiu-se melhor no atletismo.
A carreira esportiva permitiu-lhe estudar e viajar. Chegou a morar na Alemanha, formou-se em letras e hoje ensina inglês. Globalizou-se, mas não deixou a Rocinha. Pôs
um pé no mundo e manteve o outro no morro, onde é líder comunitário. Equilibra-se lá e cá.
A Rocinha, curiosamente, também se equilibra. Encontra-se no limite entre a favela e os bairros de classe média.
Habitações precárias, tráfico de drogas, um punhado de
vielas e 26 valas com esgoto a céu aberto provam que a
Rocinha é, sim, uma favela. No entanto, há por ali telefones celulares, computadores, TVs pagas, agências bancárias, videolocadoras e academias de ginástica, como em
Ipanema.
Até o vocativo que Marcus empregou contra Amendoim se situa no limite. Crioulo pode soar ofensivo. Mas,
igualmente, pode exprimir cordialidade -"ô, meu rei; ô,
gente fina; ô, crioulinho".
Logo no primeiro programa, Amendoim passava protetor solar quando
alguém de sua equipe comentou:
"Olha, ele está ficando branco!". Estava mesmo. Na Globo, fazendo as vezes
de artista, Amendoim tinha a chance
de abocanhar R$ 300 mil e se sentir enfim incluído em uma seara que não é a
dos crioulos. Só que não agradou. Foi
excluído pelos parceiros sob a alegação de que lhe falta iniciativa, de que
não consegue escutar os outros.
Por ironia, argumentos semelhantes
serviram para suprimir Marcus. Acusaram-no de alheio, de não demonstrar companheirismo. Advogado, o
jovem abandonou a profissão há um
ano. Tornou-se representante de uma
empresa que comercializa equipamentos de fitness. Já morou nos EUA
e deseja, agora, cursar a faculdade de
educação física. Desde o começo do
programa, portou-se como um sem-limite. Dormia enquanto os colegas de equipe davam duro. Criticou a baiana Hilca por estar acima do peso. Insinuou-se para a gaúcha Pipa ("essa mulher eu pegaria"). E descartou, pouco
antes da votação que iria afastá-lo, a possibilidade de o eliminarem: "O grupo me adora".
Expulso do jogo, Amendoim expressou mágoa e complexo. O veto na praia cearense trouxe-lhe de volta a lembrança de outras tantas exclusões. "Aprendi que a vida
aqui não é diferente da vida na civilização", explicou no
site da Globo. "As pessoas reagem da mesma forma. Rejeitaram-me porque sou negro."
Marcus -que se julgava intocável- arranjou motivo
gaiato para o fracasso. "O voto que me derrubou foi o da
Pipa. Ela, casada, estava com um problema: "Ah, a gente
aqui; você, um cara bonito...'" Narciso achou feio o que
não é espelho. Viu na exclusão mais um pretexto para
continuar se engrandecendo. "Saio de cabeça em pé."
Mesmo na derrota, o de cima sobe, e o de baixo desce,
como bem diz a canção. Fez-se justiça, afinal?
E-mail: aluis@folhasp.com.br
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