São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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"O pessoal da Globo se preocupou", diz diretora

DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Ela transformou o elenco de "Cidade de Deus" em ONG e abriu aos atores a oportunidade de se firmarem no mercado de trabalho. Aos 36 anos, Katia Lund, que também dirige "Cidade dos Homens", se surpreendeu com o interesse da Globo: "Eles estavam nervosos em deixar os meninos terem essa chance".

Foi difícil chegar à Globo?
Quando dissemos que usaríamos os meninos do Nós no Cinema em "Palace 2", o pessoal da Globo se preocupou. Na cabeça deles, todos os atores do mercado estão lá. Disseram "veja bem, não pode ser amador, hein?". Por sorte, o Guel [Arraes] bancou a história.
Você esperava receptividade?
Foi uma surpresa. Como não teve chamada antes, as pessoas viram "Palace 2" porque estavam mudando de canal e, de repente, ficaram sem saber o que era aquilo, tão fora do padrão global. Como o ibope subiu muito, eles pediram mais 12 episódios, que não fizemos porque estávamos filmando "Cidade de Deus".
E depois?
"Palace 2" é referência na Globo, abriu espaço para as parcerias. E mexeu com o padrão. É a primeira vez que esse tom de realismo é colocado lá. A linguagem da Globo é para um público pouco inteligente. A inovação que trazemos está no elenco e no tom, que é sutil e natural.
A minissérie é uma forma de denúncia?
Tento dizer que temos de proteger essa galera de 8 a 13 anos que está perto do tráfico. Porque o garoto se espelha no que está mais perto. O gráfico demográfico mostra que os negros entre 10 e 20 anos estão morrendo. A série chama a simpatia do telespectador por esses meninos, mostra o perigo e a tentação que eles sofrem diariamente. Não sou a favor do crime, mas do potencial dessa juventude, que é desperdiçado.
Como os meninos lidam com o sucesso?
"Cidade de Deus" já foi um impacto. Eles viraram ETs nas comunidades onde vivem e são o centro das atenções nas ruas. Quando forem vistos por 40 milhões na TV, vai ser difícil segurar a onda. Por isso, o Nós do Cinema tenta manter o grupo como uma referência.
Você pensa no risco do estereótipo?
Douglas, Darlan e Leandro estão fazendo teatro. Eles querem trabalhar e já disseram que qualquer papel é papel.
Você teme que algum deles repita a história de Fernando Ramos da Silva, que fez o filme "Pixote" e depois foi assassinado?
O que aconteceu com o "Pixote" foi uma lição para todos nós. Mas não somos Deus e não podemos garantir que não vá acontecer. Tento evitar isso mantendo o grupo coeso e digo que atuar é hobby, insisto para que estudem.
Qual é a situação da ONG hoje?
Estamos nos organizando com ajuda do Movimento Viva Rio. O custo básico é de lanche e vale-transporte. Tudo foi feito na raça. Há um cadastro de 200 atores. Viabilizamos filmes escritos e realizados por eles e damos apoio escolar.
Você foi elogiada pelo filme e, depois, criticada por causa de um suposto envolvimento com o tráfico. O que diz disso?
Nunca tive relação com o tráfico, só com os moradores. A imprensa quer história e não está nem aí pra mim como pessoa, me vê como produto: me embala como maravilhosa e depois como uma merda. A imprensa é o único poder brasileiro totalmente impune. Há cinco anos, todos perguntavam "o que aquela gringa louca vai fazer no morro?". Como tô dizendo que todo mundo é responsável, é natural esse tipo de reação. O brasileiro guarda dinheiro pra tirar onda no exterior e vira as costas para o Brasil; recebe bem os gringos e desvaloriza sua juventude. Temos que reconhecer que somos cúmplices dessa situação. Numa democracia, somos todos responsáveis.


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