São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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CRÍTICA

Adestrados para o show

EUGÊNIO BUCCI

UMA DAS cenas mais perturbadoras do documentário "Ônibus 174", em exibição em alguns cinemas de São Paulo, é o momento em que uma das reféns escreve, com um batom, no pára-brisa do circular: "Ele vai matar geral". "Ele", claro, é o assaltante Sandro, de 21 anos, que, no dia 12 de junho de 2000, manteve por várias horas alguns reféns dentro do ônibus 174, no Rio de Janeiro. Cercado por policiais e pelas câmeras de TV, que transmitiam tudo ao vivo, ele exigia armas, dinheiro e um meio de fuga. Ou era isso, ou ele mataria as pessoas que mantinha em seu poder.
O desfecho, como todos nos lembramos, foi trágico. No instante em que descia para a rua, protegendo-se atrás de uma refém que lhe servia de escudo, Sandro foi surpreendido por um policial que se aproximou tentando alvejá-lo na cabeça com uma submetralhadora. Esquivou-se e safou-se do tiro. Em resposta, disparou seu revólver contra o escudo humano. A moça morreu. Capturado, Sandro morreria nos minutos seguintes, asfixiado por policiais dentro de uma viatura.
Parece idiossincrático dizer que, num longa-metragem que retrata um episódio tão violento da vida brasileira, a cena mais perturbadora seja a imagem de uma jovem escrevendo com batom no pára-brisa. Parece idiossincrático, mas é a verdade. A cena perturba porque revela um incrível sangue frio da vítima, a refém-escriba. Ela tem a presença de espírito necessária para escrever a mensagem de modo invertido, desenhando as letras da direita para a esquerda, de modo que os policiais e os repórteres que estão do outro lado do vidro, fora do ônibus, possam ler as palavras normalmente, da esquerda para direita.
Sua calma, que parece inacreditável, é explicável. Ela sabe que escreve para as câmeras, para a platéia, e o que perturba é exatamente isso: mesmo as vítimas mais pressionadas, vivendo tensões tão extremadas, conseguem manter intacta a sua noção de cena, a noção de que é preciso saber se comunicar com as câmeras. Aquela refém pensou no conforto do telespectador. Ela sabia, instintivamente, que o sequestro transcorria como um grande show de televisão, ao vivo, e que sua sorte dependeria de seu desempenho.
Depois, várias outras mensagens se sucederiam, nos vidros laterais do coletivo, sempre em batom. O recurso do batom vira a mídia principal do criminoso. Lá pelas tantas, a escriba se atrapalha ao fazer um "s" invertido, mas logo o corrige, rabiscando por cima. Ela demonstra grande fluência e boa produtividade, o que vai lhe render uma certa simpatia da parte de Sandro. (A propósito: não será ela a escolhida para a tarefa de escudo humano; ao final, ela terá sobrevivido.)
Todos ali estavam conscientes do espetáculo. Isso se manifestou em outras passagens, que "Ônibus 174" registra muito bem. A certa altura, todos simulam, cúmplices entre si, a execução de uma refém. O criminoso força a vítima a se deitar no chão do veículo, afastando-a do campo de visão do público. A platéia sabe que ela está ali no chão, mas não a vê. Sandro comanda a cena com gestos largos, enfáticos, como se fosse o protagonista de uma peça de mímica. Em seguida, com sua intensidade gestual característica, dispara um tiro em direção à refém deitada. Imediatamente, todos gritam e choram, representando um quase estado de choque coletivo. O propósito, ficará claro logo depois, é blefar e, assim, pressionar os policiais. Mas blefar, sempre, na linguagem da TV.
A linguagem possível para o assaltante e seus reféns se comunicarem com as autoridades acaba sendo a linguagem banal dos shows de TV. É como se, fora do grande "reality show" que é o mundo retratado pelas câmeras, já não houvesse mais esperança de comunicação. É como se a vida ou a morte de cada um dependesse de seu talento diante das câmeras, de seu adestramento para entrar em cena.


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