São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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CRÍTICA

As câmeras lacrimogêneas e o nada

EUGÊNIO BUCCI

OS CONCURSOS de miss, na pré-história da televisão brasileira, ainda servem de modelo. Sempre, no final, a vencedora chorava. (Como falo sobre isso de memória, peço licença para uma breve reminiscência, talvez imprópria. Vamos lá.)
Já não sou capaz de me lembrar com precisão daqueles concursos em preto-e-branco, mas me lembro do choro das moças. Lembro-me de como elas se confraternizavam, depois de conhecido o resultado, lembro-me da segunda colocada homenageando a campeã com sua humildade e seu reconhecimento num longo abraço. A idéia de que as lágrimas da vencedora pudessem molhar o ombro fino da sua rival era perturbadora. Ou animadora, dependendo da perspectiva. O contato entre dois corpos de mulher, na televisão daquele tempo, transcorria como algo absolutamente assexuado, desde que não envolvesse nenhuma forma de umidade, de oleosidade, de líquido. A existência de uma secreção na aderência entre as peles introduzia o elemento obsceno.
Fora isso, não havia erotismo ativo nos desfiles. Eram familiares, adequados ao que não estava interditado a uma conversa em família. Um tio podia, perfeitamente, elogiar a formosura da sobrinha adolescente sem que isso agredisse a moral mais casta. Assim, as candidatas a miss estavam autorizadas pela família brasileira a desfilar de maiô, expondo vislumbres de sua exuberância carnal aos comentários estritamente técnicos dos apresentadores. Era o pranto, e os lugares por onde ele escorria, que abria as cortinas para um mundo íntimo, convulsivo, descontrolado. Por mais protocolar, previsível ou encenado que ele fosse.
Há tempos a televisão perdeu a inocência e ganhou cores. Mas, incrível, o pranto diante das câmeras continua sendo um dos principais recursos da obscenidade cotidiana. Hoje não há mais misses. Há "reality shows" e "game shows". Mas, como antigamente, ai do vitorioso que não soluçar desgovernadamente. Chorar é uma obrigação contratual. Todos choram. Políticos choram. Homens de aço lacrimejam copiosamente. Entrevistados miseráveis choram em fila, tendo ao fundo o barraco destruído pelas chuvas. Ou a foto do filho assassinado. Ou a mãe que reapareceu depois de longa ausência. Chora-se nos telejornais, nas telerrevistas de domingo, nos auditórios, sensacionalistas ou não, chora-se nas telenovelas. A competência de um ator se mede por sua velocidade em verter litros de lágrimas, com o queixo aos solavancos. Só aí, acredita-se, a mais recôndita verdade se deixa ver. Só aí o "show" comove.
Por que será que é assim?
Os holofotes se tornaram ferramentas de prospecção de lágrimas. Em close, registra-se a gota que busca fugir pelos sulcos dos pés de galinha da celebridade em foco. As câmeras desenvolveram potentes propriedades lacrimogêneas. Basta que elas se aproximem do alvo, mesmo que o alvo seja um jogador de futebol, e a probabilidade de que ele se debulhe, como se diz, é gigantesca. A sensação é de que a proximidade da câmera, por si só, já é suficiente para que venha o pranto. É como se o encontro do sujeito com a câmera equivalesse a uma notável vitória sobre o anonimato e sobre a escuridão em que sucumbem os comuns.
As pessoas não choram porque sofrem ou porque são felizes. Choram apenas porque se vêem merecedoras de serem olhadas no espetáculo. Choram diante das câmeras porque sentem que, aí, venceram a invisibilidade, nem que seja por alguns instantes. Por isso, aliás, choravam as misses. As pessoas choram e, chorando, promovem o aguaceiro da televisão mais obscena. A obscenidade, pensando bem, não tem nada a ver com sexo, nem com violência, nem com nada que não seja o ato de escancarar sentimentos pífios, pequenos, amofinados, pedintes de olhar público. Sentimentos constrangedores em sua constrangedora falsificação.


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