São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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CRÍTICA

As drogas e o consumo do gozo

EUGÊNIO BUCCI

O MERCHANDISING que a novela "O Clone" vem fazendo para as clínicas de recuperação de drogados gerou uma onda de otimismo entre os donos das clínicas -pois a clientela aumentou- e também entre todos os que se preocupam com o uso crescente de drogas pela juventude. Eu me incluo aí entre esses todos. Aplaudo, secretamente, sentado no sofá, o esforço da novela em orientar o público. Há momentos memoráveis na cruzada careta de "O Clone". Há algumas semanas, vi o personagem Lobato (Osmar Prado) num de seus monólogos. Aquele foi especialmente tocante. Ele afirmava que, se pudesse conversar com os jovens sobre drogas, jamais diria que a coisa é ruim e pronto. Ao contrário, ele diria que é bom, que as substâncias que causam dependência também proporcionam prazer e que o problema está justamente aí: drogas, ao menos no começo, são uma delícia. Essa fala representa um progresso nas campanhas antidrogas. Ela reconhece o prazer, e isso ajuda muito. O vício, todos sabemos, nada mais é que uma forma de prazer que assume o comando sobre o sujeito. Aí, ele deixou de ser livre, tornou-se escravo, já não é mais senhor de suas decisões.
É positivo que essa discussão apareça no horário nobre da Globo. Mas é também estranhamente contraditório, o que logo explicarei. A televisão, quando combate as drogas desse modo, está combatendo o prazer que leva ao vício. Fixemos essa passagem: a televisão combate uma possibilidade de prazer físico que é o prazer acionado pela presença da substância no corpo. Nada mais elementar. Quem queira dizer não às drogas (ao pesadelo final a que elas conduzem) está dizendo não a um prazer (o prazer do início). Há um elemento de renúncia nessa atitude que deve ficar muito claro. Sem essa renúncia, a liberdade individual não será viável. Ocorre que, como conjunto, e aí surge o que há de estranhamente contraditório nessa história, o discurso todo da televisão é um discurso do prazer. Não por acaso, há quem diga que a televisão pode ser, mais que um hábito, um vício mesmo. O que não vem ao caso. Prossigamos.
O discurso da televisão, predominantemente publicitário, afirma reiteradamente que a felicidade só é acessível pela via do consumo. Promete o gozo em uma dimensão dupla: a primeira é aquela do gozo pelas imagens, pelas cenas caudalosas e líquidas que nos embalam os olhos e nos lambem (imaginariamente) o corpo (ver televisão é gozar num "continuum"); a segunda dimensão de gozo acontece pela posse da mercadoria anunciada, a mercadoria exclusiva que irá fazer de cada indivíduo anônimo um ser mais especial que todos os outros. O gozo prometido pela televisão requer, em algum momento, que o telespectador viva a sensação de ser superior aos que o cercam. É por isso que há gente que paga milhares de reais para desfilar por aí com uma bolsinha de zíper: a bolsinha é a marca da inferioridade do outro.
Os telespectadores/consumidores gozam no consumo porque consomem o gozo. Consomem a sensação de serem desejáveis, a sensação de serem vitoriosos, a sensação de sucesso, de força, de poder. Consomem o gozo individualista. Importante: um gozo imaginário.
Ora, que gozo pode ser mais individualista e mais pleno do que aquele que acontece no corpo, o gozo real produzido pelas drogas? Nenhum. O ideal inconfessável da TV comercial é matar a civilização de overdose. É uma contradição que a televisão procure falar contra o prazer das drogas, mas não há contradição alguma no fato de a nossa sociedade, a sociedade de consumo, fabricar e difundir cada vez mais drogas de todo tipo. Nessa sociedade, só um gozo é realmente proibido: o gozo da liberdade. A juventude pensa: tudo bem, eu topo renunciar ao prazer, ao menos em parte, mas liberdade para quê? Para ver televisão? Ver TV para ver essas drogas? Tô fora.



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